Boa noite amigos,
Imagem da escritora emprestada de KD Frases. |
Em
Água
Viva, um romance sem romance[1]publicado
no ano de 1.973, Clarice Lispector, autora
e personagem, em narrativa linear, na primeira pessoa (um “eu” feminino), revela a
um “tu”
(um namorado, um amor platônico, o seu alterego masculino?), muito de sua
natureza e daquilo que marcaria para sempre a sua literatura. Uma literatura densa
e complexa, metida em perene indagação acerca do autoconhecimento[2], dos
males da condição humana, de buscas e ansiedades, anjos e demônios e conflitos
existenciais jamais superados, no ser vivo que confessa para sempre a sua
natureza paradoxal e fragmentária, mas que também se conecta com o não humano,
o “it” ou “a coisa”, representado pelas dimensões do mundo, do tempo
e do espaço. Assim como na literatura de Vinicius de Moraes, companheiro do
movimento modernista da 3ª. geração, seu tema preferido foi a busca do eterno
num mundo de natureza transitória e temporal[3].
Clarice, como seu personagem, desde a
primeira infância, foi atormentada pela ideia fixa da morte inevitável, da
incompreensão quanto ao significado da vida e os mistérios de sua origem e fim e a vinculação do ser e da própria
existência a um presente fluido, sem memória[4].
Mas se tal preocupação é geral na raça humana, variando apenas a maneira com
que os homens, em todos os tempos, lidaram com os segredos do universo, para
Clarice, porém, nessa obra que pode ser considerada autobiográfica e em que ela
coloca, de forma escancaradamente explícita, sem rebuços, os seus conflitos mais variados, são temáticas
que afetam o seu cotidiano, atingindo sua alma profunda e permanentemente
atormentada, à cata de algum recurso que torne mais leve e suportável[5] o que considera a inevitabilidade da vida, combustível esse que conclui,
mas não definitivamente, ser a alegria, a felicidade e a provável aleluia que
viria sempre, sempre, depois da dor e das perdas[6].
Seu
pensamento transita no limiar entre a lucidez e a loucura, a realidade e o
sonho, o sonho e a fantasia, a ordem e a desordem e a obscuridade para si
mesma.[7] A
sua escrita é consequência da necessidade de desabafar escrevendo, como
complemento de seus desenhos que nem sempre conseguem transmitir, com
fidelidade, a sua mensagem angustiante. Suas orações são tiros, disparos,
explosões, por efeito de uma catarse que vai se manifestando sem nenhum
controle[8].
Todo o monólogo de Água Viva parece decorrer de
impulsos neurológicos, em que as
palavras não são escolhidas, mas vão aparecendo, sem ordem, sem lógica, sem
censura, sem qualquer metodologia, como
se o escritor fosse apenas anotando as
mensagens transmitidas por uma entidade metafísica.
A
narrativa, porém, pese embora transmitir a anarquia do pensamento, a desordem
de que fala a própria autora para revelar e revelar-se, segue numa cadência em
que sons, silêncios e sentimentos, se misturam magnificamente, mantendo o
interesse e a curiosidade do leitor e o seu encantamento pela forma de
transmissão, uma especialidade da escritora. Em Água Viva, escrita quatro
anos antes de sua morte, Clarice, com mais de meio século de existência, nos
brinda com um ensaio maduro, belo e profundo, quiçá indecifrável,[9] sobre
a existência e a condição humanas, suas buscas e seus fins, que nos remete para a mais refinada literatura
ficcional psicológica, de que é exemplo o seu conterrâneo mais famoso, Franz
Kafta, mais que escritor, o criador de um estilo.
Até
mais amigos,
[1] Expressão usada por Lucia Helena,
Professora de Literatura, autora da obra “Nem musa nem medusa: Itinerários da escrita
de Clarice Lispector”, na apresentação constante da orelha de capa da
edição de 1.998, Rocco Editora, Rio de
Janeiro.
[2] “Mas há
perguntas que me fiz em criança e que não foram respondidas, ficaram ecoando
plangentes: o mundo se fez sozinho? Mas se fez onde? Em que lugar? E se foi
através da energia de Deus – como começou? Será que é como agora quando estou
sendo e ao mesmo tempo me fazendo? É por esta ausência de resposta que fico tão
atrapalhada.”
[3] “Quero possuir
os átomos do tempo. E quero capturar o presente que pela sua própria natureza
me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu
sempre no já.”
[4] “Quando eu morrer então nunca terei nascido e vivido: a
morte apaga os traços de espuma do mar na praia.Agora é um instante.”
[5] “Eu que venho da dor de viver. E não a quero mais.
Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a
inconseqüência. Liberdade? É o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e
agüento-a como um dom mas com heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo.”
[6] Em Clarice nenhuma ideia, nenhum
pensamento, nenhuma conclusão pode ser considerada definitiva, dada a natureza
de seu pensamento: confuso, complexo, ambíguo, como ela própria se julga; “Mas não há paixão sofrida em dor e amor a
que não se siga uma aleluia”.
[7] “Não sei
sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente
uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele
morresse e que perpetuamente morre.”
[8] “Eu é que estou escutando o
assobio no escuro. Eu que sou doente da condição humana. Eu me revolto: não
quero mais ser gente. Quem? Quem tem misericórdia de nós que sabemos sobre a
vida e a morte quando um animal que eu profundamente invejo – é inconsciente de
sua condição? Quem tem piedade de nós? Somos uns abandonados? Uns entregues ao
desespero? Não, tem que haver um consolo possível. Juro: tem que haver. Eu não
tenho é coragem de dizer a verdade que nós sabemos. Há palavras proibidas. “
[9] “Inútil
querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me
pega mais. Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão
atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo. Parece com
momentos que tive contigo, quando te amava, além dos quais não pude ir pois fui
ao fundo dos momentos.”