terça-feira, 12 de dezembro de 2017

UM POUCO DE CLARICE LISPECTOR - ÁGUA VIVA

Boa noite amigos,

Imagem da escritora emprestada de KD Frases.
Em Água Viva, um romance sem romance[1]publicado no ano de 1.973, Clarice Lispector, autora e personagem, em narrativa linear, na primeira pessoa (um “eu” feminino), revela a um “tu” (um namorado, um amor platônico, o seu alterego masculino?), muito de sua natureza e daquilo que marcaria para sempre a sua literatura. Uma literatura densa e complexa, metida em perene indagação acerca do autoconhecimento[2], dos males da condição humana, de buscas e ansiedades, anjos e demônios e conflitos existenciais jamais superados, no ser vivo que confessa para sempre a sua natureza paradoxal e fragmentária, mas que também se conecta com o não humano, o  “it” ou “a coisa”,  representado pelas dimensões do mundo, do tempo e do espaço. Assim como na literatura de Vinicius de Moraes, companheiro do movimento modernista da 3ª. geração, seu tema preferido foi a busca do eterno num mundo de natureza transitória e temporal[3]. Clarice, como seu personagem,  desde a primeira infância, foi atormentada pela ideia fixa da morte inevitável, da incompreensão quanto ao significado da vida e os mistérios de sua origem  e fim e a vinculação do ser e da própria existência a um presente fluido, sem memória[4]. Mas se tal preocupação é geral na raça humana, variando apenas a maneira com que os homens, em todos os tempos, lidaram com os segredos do universo, para Clarice, porém, nessa obra que pode ser considerada autobiográfica e em que ela coloca, de forma escancaradamente explícita, sem rebuços,  os seus conflitos mais variados, são temáticas que afetam o seu cotidiano, atingindo sua alma profunda e permanentemente atormentada, à cata de algum recurso que torne mais leve e suportável[5]  o que considera a  inevitabilidade da vida, combustível esse que conclui, mas não definitivamente, ser a alegria, a felicidade e a provável aleluia que viria sempre, sempre, depois da dor e das perdas[6].
Seu pensamento transita no limiar entre a lucidez e a loucura, a realidade e o sonho, o sonho e a fantasia, a ordem e a desordem e a obscuridade para si mesma.[7] A sua escrita é consequência da necessidade de desabafar escrevendo, como complemento de seus desenhos que nem sempre conseguem transmitir, com fidelidade, a sua mensagem angustiante. Suas orações são tiros, disparos, explosões, por efeito de uma catarse que vai se manifestando sem nenhum controle[8]. Todo o monólogo de Água Viva parece decorrer de  impulsos neurológicos, em que  as palavras não são escolhidas, mas vão aparecendo, sem ordem, sem lógica, sem censura,  sem qualquer metodologia, como se o  escritor fosse apenas anotando as mensagens transmitidas por uma entidade metafísica.
A narrativa, porém, pese embora transmitir a anarquia do pensamento, a desordem de que fala a própria autora para revelar e revelar-se, segue numa cadência em que sons, silêncios e sentimentos, se misturam magnificamente, mantendo o interesse e a curiosidade do leitor e o seu encantamento pela forma de transmissão, uma especialidade da escritora. Em Água Viva, escrita quatro anos antes de sua morte, Clarice, com mais de meio século de existência, nos brinda com um ensaio maduro, belo e profundo, quiçá indecifrável,[9] sobre a existência e a condição humanas, suas buscas e seus fins,  que nos remete para a mais refinada literatura ficcional psicológica, de que é exemplo o seu conterrâneo mais famoso, Franz Kafta, mais que escritor, o criador de um estilo.

Até mais amigos,



[1] Expressão usada por Lucia Helena, Professora de Literatura, autora da obra “Nem musa nem medusa: Itinerários da escrita de Clarice Lispector”, na apresentação constante da orelha de capa da edição de 1.998,  Rocco Editora, Rio de Janeiro. 
[2] “Mas há perguntas que me fiz em criança e que não foram respondidas, ficaram ecoando plangentes: o mundo se fez sozinho? Mas se fez onde? Em que lugar? E se foi através da energia de Deus – como começou? Será que é como agora quando estou sendo e ao mesmo tempo me fazendo? É por esta ausência de resposta que fico tão atrapalhada.”
[3] Quero possuir os átomos do tempo. E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já.”
[4] Quando eu morrer então nunca terei nascido e vivido: a morte apaga os traços de espuma do mar na praia.Agora é um instante.”
[5] Eu que venho da dor de viver. E não a quero mais. Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a inconseqüência. Liberdade? É o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e agüento-a como um dom mas com heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo.”

[6] Em Clarice nenhuma ideia, nenhum pensamento, nenhuma conclusão pode ser considerada definitiva, dada a natureza de seu pensamento: confuso, complexo, ambíguo, como ela própria se julga;  “Mas não há paixão sofrida em dor e amor a que não se siga uma aleluia”.
[7] Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre.”
[8] Eu é que estou escutando o assobio no escuro. Eu que sou doente da condição humana. Eu me revolto: não quero mais ser gente. Quem? Quem tem misericórdia de nós que sabemos sobre a vida e a morte quando um animal que eu profundamente invejo – é inconsciente de sua condição? Quem tem piedade de nós? Somos uns abandonados? Uns entregues ao desespero? Não, tem que haver um consolo possível. Juro: tem que haver. Eu não tenho é coragem de dizer a verdade que nós sabemos. Há palavras proibidas. “
[9] Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo. Parece com momentos que tive contigo, quando te amava, além dos quais não pude ir pois fui ao fundo dos momentos.”