segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

EU E ELIS REGINA. CAPÍTULO I

 

Boa noite amigos, 


O apresentador pedia silêncio absoluto. Rapazes e moças foram se sentar no chão, bem próximos do pequeno palco improvisado no salão principal do Clube Fonte São Paulo, um dos mais tradicionais aqui em Campinas, Estado de São Paulo. A cantora viajava pelo Brasil, incluindo as capitais e os interiores dos estados, no chamado “Circuito Universitário”, um de seus projetos populares, que lhe dava imensa satisfação, como sempre admitiu.  Eis que Elis Regina surge no palco improvisado e logo o preenche com voz poderosa, a despeito de 1,53 m. de altura, a encantar todos os afortunados acadêmicos presentes. Não sei como eu e minha namorada, depois esposa, tínhamos participado desse encontro, pois não éramos sócios do clube, nem tínhamos dinheiro para pagar ingresso.  Provavelmente tenha sido convite ou doação do Dr. Mário Stucchi, sócio e diretor do clube, pessoa muito querida e que acompanhou a minha trajetória profissional, desde que eu era simples auxiliar de cartório. Hoje falecido e saudoso,  foi um dos nossos padrinhos de casamento no já distante ano de 1.975. Era o ano de 1.973 e o Brasil continuava  a conviver com a ditadura militar e a censura,  ano em que Elis lançava mais um álbum de sua carreira  (Elis, 1973) e participava  do Phono 73, um grande festival de música popular promovido pela gravadora Phonogram no centro de Convenções do Anhembi em São Paulo, que deu origem a três LPs. com as apresentações mais marcantes. Para que se tenha ideia das celebridades participantes e da vastidão de suas origens e ritmos, lá se apresentaram Caetano, Gil, Gal Costa, Jards Macalé, os Mutantes com a então vocalista Rita Lee, além de Roberto e Erasmo Carlos, Wanderléa, Milton Nascimento etc. etc.  Elis havia gravado, nesse disco de 1.973, uma faixa que virou música de trabalho, com  uma regravação de antiga composição do desconhecido Pedro Caetano, lançada como samba no carnaval de  1.948 e que, com a interpretação pessoal e o novo arranjo de Cesar Camargo Mariano, virou um estrondoso sucesso nacional. O samba-choro É com Esse que eu Vou, abriu o nosso encontro naquela noite,  e todos nós, surpreendidos  com a potência de voz,  a forte presença cênica, a  afinação e  ginga da Pimentinha, tratamos de ir decorando a letra, que dizia:  /É com Esse Que eu Vou/Sambar até cair no chão/Com esse que eu vou desabafar na multidão/Se ninguém se animar eu vou quebrar meu tamborim/Mas se a turma gostar vai ser pra mim (....). E seguia:“Quero ver o ronca-ronca da cuíca/Gente pobre, gente rica/deputado, senador/quebra, quebra que eu quero ver uma cabrocha boa/ No piano da patroa batucando/É com esse que eu vou/.  Para terminar, com toque de suingue, reproduzindo e misturando trechos da letra (Um Vamp?), criado espontaneamente pela intérprete se ajustando ao arranjo (ou este a ela): /eu sei que vou/com esse que vou/mas é com esse que eu vou, sambar na multidão/até cair no chão/ eu vou, eu sei que vou, eu vou.....” Esse foi o meu primeiro encontro pessoal com Elis que eu já conhecia do começo da carreira, especialmente pela divulgação, pela mídia, da canção “Arrastão”, composição de Edu Lobo e Vinícius de Moraes (com que ela venceu o I festival de MPB da extinta TV Excelsior e documentada num compacto duplo que trazia, do lado B, Aleluia, um samba do mesmo Edu, com letra de Ruy Guerra). Do aludido festival e dos gestos largos da menina de 19 anos,  que girava os braços como se estivesse a voar, foi chamada de Élis Regina (referência a hélice, uma maldade ou sacanagem inventada por Ronaldo Bôscoli, que depois se tornou seu marido). Esse foi só o começo de um encontro pessoal, dos poucos que ainda iriam acontecer ao vivo, mas que projetou, para sempre, a minha crescente voragem antropofágica por essa artista e tudo que ela cantava ou fazia e que se tornou minha maior inspiração, insubstituível antes e depois de seu precoce passamento em 1.982, com apenas 36 anos de idade.

Até mais amigos.