Boa tarde amigos,
O mais recente romance de Luiz Carlos Ribeiro Borges, “CRÔNICA de BERNARTZ & BERTRAN”,[1] é uma obra cuidadosamente elaborada, como adverte o autor no prefácio, tecida a partir de duas dentre as suas confessadas paixões: a Provence do sul da França e a obra dos trovadores medievais, que criaram e cantaram as líricas trovas de amor, trazendo poesia, vida e luz à escuridão da Idade Média, marcada pelo teocentrismo e pelas delações, perseguições, condenações sumárias e execuções da Igreja Católica Apostólica Romana[2]. Protagonistas reais do romance, com o único traço comum da notoriedade e reconhecimento como grandes trovadores que foram, Bernart de Ventadorn e Bertran de Born, dão título ao livro e têm os seus currículos explorados com apoio nas inúmeras pesquisas e obras consultadas pelo autor. Mas o caráter biográfico da obra fica por aí. A partir da notícia de que ambos os trovadores teriam se recolhido, numa mesma abadia, em Dalon, por volta do ano de 1.195, onde o primeiro se tornou monge, o autor supõe razoavelmente que eles teriam se encontrado e, a contar dessa probabilidade e de como teria sido esse relacionamento breve[3], cria o romance, construindo todos os outros personagens fictícios, com os quais os notáveis trovadores teriam dividido uma convivência, ora harmônica, ora tensa e difícil, às vezes próxima, outras de distanciamento, num mundo de desconfianças, medo e perseguições, que marcaram o obscurantismo da Idade Média e o desenvolvimento das várias correntes filosóficas então contemporâneas ou anteriores, voltadas para o homem, sua origem e finalidade[4]
Os
diálogos são primorosos e cada um dos personagens fictícios foi construído e se
conduz, no desenvolver do romance, em consonância com as bases da doutrina que
professa ou censura, fidelidade que agrega ao romance, além da beleza estética,
um apreciável valor pedagógico e histórico no que respeita aos precursores das
doutrinas que deram vida às correntes filosóficas suscitadas.
Ao leitor é lícito supor que as reflexões a que se permitem os personagens, oriundos que são de mundos e experiência diversos, a par de enriquecedoras, por certo também revelam muito do próprio autor, na busca da compreensão pelo que seja a natureza humana, a finalidade e o destino do homem e, especialmente, as facetas do amor, nas suas diversas manifestações, não o amor platônico apenas, não só o amor divino, não só o amor de pai, de mãe, mas também, dentro dessa natureza humana animal, a legitimidade do amor-paixão, breve, arrebatador, real ou onírico e o sexo perseguido como expressão única de prazer mundano, inevitável, buscado sem culpa ou pecado, como mera expressão hedonista[5].
Se
o livro é a viagem de quem perdeu o
trem, ou que não tenha recursos para viajar, Borges, na sua desenvoltura para criar e
conduzir o leitor pelo romance, vai apresentando os personagens, inserindo-o no
cotidiano deles, contando a sua história passada e revelando em que medida agora são eles reflexos da experiência amealhada, do
seu caráter, dos seus temores e conflitos, e bem assim, as suas dúvidas entre
dedicar-se ao recolhimento monástico ou retornar à vida secular.
Por
fim, viajando no tempo, o romance, até então contado, em primeira pessoa, pelo
trovador Bernartz, com suas visões e impressões, vai encontrar
nosso escritor, inserido no mundo moderno do século 20, transmitindo as
suas conquistas e frustrações, num ensaio acerca do tempo, seus efeitos
inexoráveis sobre a saúde física e mental, reproduzindo, assim, os mesmos questionamentos que acompanham o ser
humano, desde o aparecimento da sua espécie (o homo sapiens), vida e morte, a religião e seu papel e influência nas
sociedades de todos os tempos, amor e
sexo, o sexo sem amor, as virtudes e os
pecados, os valores, a transcendência e
a finalidade do homem.
Aqui
também, como em obras anteriores, Borges volta a uma de suas temáticas prediletas: a natureza e o poder do sexo sobre os homens e seus
destinos, o fascínio pelo enigma da mulher
e seu poder de sedução e perdição, aproximando-se, nesse particular, de um dos elementos presentes na poesia de
Vinicius de Moraes[7].
Há
também, acredito, um certo fascínio por figuras reputadas marginais, ontem e
hoje, que desafiam os costumes e valores sociais e morais, revelando a coragem
e a possibilidade de alternativas de vida condicionadas apenas às suas próprias
convicções e vontade.
A
despeito de temas pesados e profundos, Borges consegue dar leveza e seguimento
ao romance, sem gerar no leitor um fastidio ou cansaço, mantendo-o envolvido com os personagens e os
acontecimentos e a curiosidade pelo desfecho dos conflitos que essa interação
provoca, outro aspecto marcante na obra.
Em
síntese, uma obra que, adjetivada como ficção, um romance, é muito mais que
isso e pode aparecer como indica o catálogo como relativa à poesia Medieval, os
Trovadores, ao Trovadorismo, à Filosofia, além da biográfica com relação aos
protagonistas, os notáveis trovadores, Bernardt de Venadorn e Bertran de Born.
Como
todos os outros livros do autor não é obra com apelo popular ou comercial. Mas
como disse um dia o escritor Manuel Carlos sobre Elis Regina: “Elis (substituo
por Borges) não faz obra para o público; faz público para sua obra”. E se me
permite o autor sem qualquer envolvimento da estima que nos une há muitas
décadas, peço que me admita, modestamente, como fiel integrante dessa última categoria.
Até
mais amigos,
[1] Borges, Luiz Carlos Ribeiro. Crônica de Bernartz e Bertran/Luiz Carlos Ribeiro. – 1ª. Ed. Campinas (SP). Pontes Editores, 2020. 252 p.
[2] “Para suprir essas conversações, tive que
empreender uma leitura, tão vasta quanto permitiam as minhas limitações: sobre
as ideias teológicas, filosóficas e estéticas que vigoravam naquele final do
século 12; a paixão medieval pelos livros e as iluminuras que os ornamentavam;
os autores que eram então venerados ou execrados; as escolas de filosofia às
margens do conhecimento; as heresias; os fatos históricos, tanto os
contemporâneos à ação do romance quanto os pretéritos, assim como aqueles,
vindouros, que esses fatos faziam prenunciar (por exemplo, o crescimento da
heresia dos cátaros, em constante conflito com a doutrina oficial da Igreja,
poderia acarretar um desfecho trágico, como em verdade aconteceu, já no século
seguinte, com o extermínio dos adeptos da heresia)” (p. 9).
[3] Leituras e pesquisas, realizadas durante a confecção do romance, viriam a revelar que Bertran realmente se recolheu à abadia de Dalon: o encontro fictício e imaginário entre os dois poetas passou a se revestir de probabilidade histórica. (orelha da contra-capa do livro).
[4] “Aparentemente, apenas o abade e o bibliotecário conhecem meu passado de trovador e cortesão. Os demais habitantes da abadia nada sabem de mim, nem se interessam, imersos nos motivo pessoais de sua própria reclusão, a maioria ali tendo vindo para cumprir uma sincera vocação monástica, outros para expiar algum terrível pecado da juventude, para se isolar do mundo exterior e de suas intermináveis guerras e tentações ou simplesmente para esperar a morte.”
[5] “Para minha perplexidade, a visão
portentosa de suas carnes brancas, aliada ao gesto cerimonial de verter água
sobre si mesma, fez refluir rios que eu reputava secos e estéreis......
Possuído, como que estimulado por algum elixir de bruxas, pensei em atacá-la,
arrastá-la para a margem, derrubá-la e me espojar sobre ela. Mas tudo se fazia
muito urgente, e não havia tempo para qualquer outro gesto.” (pág. 75).
[7] “Resta essa fidelidade à mulher re ao seu tormento. Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável.” O HAVER.
Trovadores, pioneiros da música popular, do contar de histórias e da poesia através da música compreensíveis para as pessoas comuns. Gostei do ambiente e da temática da obra, Doutor, resenha instigante!
ResponderExcluirCaro Antonio. O talentoso autor reúne nessa obra resultante de pesquisas e prolongados estudos tudo a que se propôs: romance, ficção, história, filosofia e especialmente a beleza das trovas de amor cantadas pelos dois notáveis trovadores da idade média. Vale a pena. Abraço.
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