terça-feira, 29 de novembro de 2022

ARTIGO- SETENTA ANOS, O REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS E A SÚMULA N. 655 DO STJ.

Boa noite meus amigos, 


A reprodução acima é do Jornal de Pernambuco
e noticia um acidente envolvendo uma "velhinha de 42 anos. A edição é de 1.904.

O Direito de Família que está no Código Civil de 2.002 não existe no mundo real. Refém de um projeto que teve início nos anos 70, a despeito de sua permanente revisão, em função, sobretudo, do advento da nova ordem constitucional surgida com a Carta Magna de 1.988 e da legislação esparsa que se seguiu, as adaptações vieram forçadas, isoladas, em forma de “colcha de retalhos” e não foram suficientes para garantir a coerência sistemática de suas disposições. Diga-se, em acréscimo, que, se o Código Beviláqua se conservou adequado durante as primeiras décadas de sua vigência, certo é que no que tange ao Direito de Família, consagrava o perfil e os valores de um Brasil essencialmente rural e atrasado,  cheio de preconceitos, enfatizando a supremacia dos varões[1] e o seu caráter patrimonialista,   distante, pois,   da pos-modernidade e de uma sociedade que clama por de um mundo de igualdade e inclusão, o que se convencionou chamar de justiça social. Sem alongar as considerações de ordem geral, do conhecimento de todos os juristas e operadores do Direito que, no dia a dia, se ocupam e se preocupam com as inconsistências da ordem jurídica existente, vivemos em sobressalto com as novidades que um Poder Judiciário ativista nos impõe, em forma de arbitrárias Súmulas vinculantes.  Tais súmulas ou enunciados,  nem sequer nos garantem estabilidade, diante dos conhecidos conflitos internos[2] entre Turmas e Tribunais, a desafiar esse tão renegado princípio da segurança jurídica[3]. Volvemos ao Direito de Família. Equiparada ao casamento, a união estável viu no Código Civil vigente, no campo relativo à sucessão, um enorme retrocesso. A sucessão do companheiro na união estável foi disciplinada diferentemente da sucessão do cônjuge e com consideráveis diferenças, a acentuar a distinção histórica preconceituosa do legislador no tratamento legal entre os núcleos familiares formados espontaneamente e o casamento formal, contra a equiparação constitucional determinada pelo Constituinte e  regulamentada pelas Leis 8971/94 e 9278/96. Demorou para o Supremo Tribunal Federal proclamar a inconstitucionalidade do art. 1.790 do vigente Código Civil, que cuida da sucessão dos companheiros,  em termos sensivelmente desvantajosos em relação à sucessão do cônjuge.   Mas das velharias que nada tem a ver com os valores da sociedade atual, o legislador do Código Civil reproduziu no art. 1.641, o preceito do velho diploma de 1.916, que, no art. 226, impunha o regime de separação aos nubentes que decidissem se casar em certas hipóteses ali enunciadas. Para a mulher com mais de 50 anos e o homem com mais de 60, o regime do casamento ou da união estável não era livre,  como se facultava aos demais. A vetusta disposição era, inclusive, discriminatória e absolutamente preconceituosa. O Tribunal de Justiça de São Paulo, na vigência do Código Civil anterior, já reconheceu a não recepção do aludido dispositivo pela Constituição Federal de 1.988, enfatizando conflito evidente com o art. 1º, III, e 5º, I, X e LIV da Carta Constitucional Cidadã.[4]   Na redação original do vigente Código,  os nubentes, em homenagem ao princípio da igualdade, foram equiparados e a idade mínima passou de 50 para mulheres e 60 para os homens, para 60 anos, indistintamente. Em 2.010, no entanto, a Lei 12.344, elevou essa idade para 70 anos, em função do aumento de expectativa de vida no Brasil decorrente da evolução da Medicina e da tecnologia. E onde se falava em casamento com impedimento impediente, agora o legislador converteu as hipóteses em causas suspensivas do casamento. Lecionando, há 43 anos, na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, repeti, incontáveis vezes, a lição dos doutores, segundo a qual a velhice, a ancianidade, não é, por si, causa de incapacidade civil. A senilidade, a perturbação mental, o acometimento de mal que impede o sujeito de direito de compreender e, pois, dispor, no comércio jurídico, de seus bens, direitos e obrigações, é que leva à incapacidade, em qualquer estágio da vida, incapacidade essa que pode ser parcial ou total, graduada em regular processo de interdição, ou de simples curadoria. A capacidade, pois, é regra e nunca deve ser exigida a sua prova. Trata-se de presunção legal.  Daí se conclui que um homem aos 90 anos, uma mulher aos 100 anos, não podem ser impedidos de exercer plenamente os seus direitos e obrigações só pela avançada idade.  Se, na dicção do art. 1º do Código Civil, toda pessoa é capaz de direitos e obrigações na ordem civil e, pois, de exercitá-lo (dotados, pois, da capacidade de direito e, também,  de fato ou exercício, salvo aqueles mencionados nos artigos 3º e 4º (aqueles representados, estes assistidos), não há como presumir incapacidade de qualquer espécie para pessoas em função de limite de idade ou de outras circunstâncias, que lhes interdite exercício de direito a todos conferido.  Logo, a imposição de regime, se justificável nos dias que correm, deve ser dirigida não ao idoso, ao velho, mas à pessoa de qualquer idade que não tiver condições de deliberar acerca de sua situação patrimonial.  Vamos então, antes de mais nada, expurgar essa anacrônica imposição de regime da separação obrigatória a todas as hipótese de que trata o art. 1.641 do Código Civil vigente,  mesmo porque, se nem sequer figuram como impedimento matrimonial, mas como causas de suspensão do casamento e o juiz pode dispensá-la (art. 1.523, parágrafo único), não tem sentido manter a interdição à liberdade de fixação do regime de bens do casamento ou únião estável.[5] Trato desse assunto para cuidar de outro com ele relacionado. Surpreendido com a notícia de que o STJ editou a Súmula n. 655[6], que busca eliminar a discussão que se travou, desde a vigência do novo Código Civil, se este teria recepcionado o entendimento da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal ou se, ao revés, essa súmula estaria revogada, a doutrina se dividiu a respeito. Tratando, é verdade, de união estável iniciada quando um dos companheiros já conta mais de 70 anos, considerou a possibilidade de comunhão dos aquestos, ou seja, dos bens adquiridos na constância da união estável, mas revisitando a referida súmula, impõe a esse tipo de união, o mesmo regime obrigatório para o matrimônio. Admitindo a vigência e constitucionalidade do art. 1641 do Código Civil, o que se repudia, parece razoável a equiparação entre união estável e casamento, pela coerência do sistema.  Acontece que essa releitura mexe com a benfazeja presunção absoluta da comunicação dos aquestos, pois, eliminando a presunção, só admite a comunicação, se  provado ou comprovado o auxílio recíproco na aquisição dos bens. Essa exigência sempre foi direcionada aos cônjuges casados apenas sob o regime de separação convencional de bens. Nela, em respeito à vontade livremente manifestada em pacto antenupcial, pelos nubentes ou companheiros, tem sua justificativa. Mas trazê-la novamente para aqueles que nunca puderam eleger o regime de bens, por proibição do Estado é coisa que atenta contra a harmonia e comunhão devida que se preconiza para o organismo familiar de qualquer origem. E lança sobre a segurança jurídica um golpe de profundas consequências indesejáveis. Historicamente, a  comunhão dos aquestos surgiu como construção pretoriana que, no começo do século 20, buscava fazer justiça aos casais italianos que vieram para o Brasil, no final do século 19, para substituir os escravos nos trabalhos braçais, especialmente rurais no Estado de São Paulo, onde a imigração italiana foi mais acentuada. E os casais vinham., com “uma mão na frente e outra atrás”, expressão popular que indicava a inexistência de bens, aventurando-se na nova pátria, em busca de horizontes e possibilidades. Vinham casados. O regime comum na Itália era o da separação de bens. Aqui se instalavam, criavam filhos e viviam o resto de suas vidas. Os bens que adquiriam, muitos deles fruto do trabalho braçal de ambos[7], acabava figurando, no título, apenas em nome do marido, numa reprodução formal e histórica do regime patriarcal. Morto o companheiro, não tinha a viúva, pelo regime de bens do casamento, direito algum sobre a herança. Nem mesmo meação. Ficava ela à mercê da compreensão dos filhos do casal, muitos dos quais chegavam a lhe negar, nos Tribunais, qualquer parcela de direito sobre esses bens. Assim, nasceu a aplaudida construção da jurisprudência sobre a comunicação dos aquestos. E foi ela que, anos depois, inspirou o verbete da Súmula 377, em homenagem à justiça, à paridade e ao princípio universal que veda o enriquecimento à custa do trabalho alheio. Os anos se passaram. A teoria da comunicação dos aquestos foi sendo aperfeiçoada  e estendida às uniões estáveis. Em relação a estas, num primeiro momento exigiu-se a prova da existência de sociedade de fato entre os concubinos (Súmula n. 380 do STF). Depois, de que havia presunção relativamente à comunhão desses bens. De indenização conferida, às concubinas, em tempos anteriores à CF de 88, por carência de prova de contribuição efetiva na construção do patrimônio, a jurisprudência passou a admitir o recolhimento de parcela do patrimônio dito comum, até presumir o esforço comum, invertendo o ônus da prova. Por fim, considerou o trabalho em casa, em lides domésticas, como sendo equivalente à contribuição. E derradeiramente, considerou que o trabalho no lar tinha o mesmo valor aritmético inclusive, do trabalho que o marido exercia fora do lar. Pronto. Chegamos ao ponto ideal. Tudo estava consolidado. Já não se admitia discussão sobre percentuais, valores, formas de contribuição. E é esse o estágio que aplaudimos, porque não insere, no seio da relação de casamento ou de união estável, que têm como base fundamental a afetividade, uma competição financeira, patrimonial. Afinal, este Código não é mais patrimonialista, como garantiu o seu Coordenador Geral, o saudoso jusfilósofo, Miguel Reale, e há igual posição do homem e da mulher, ou dos homens ou de mulheres, nos seus  relacionamentos.  A súmula 655 publicada semana passada é, no mínimo, inoportuna e não terá aplicação porque trata  de hipótese de equiparação entre institutos (casamento e união estável) sobre o regime da separação legal ou obrigatória de bens, quando o malfadado art. 1.641, I,  do Código Civil está com os dias contados, segundo suponho, porque arguida a sua inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal no Agravo em Recurso Extraordinário, com Repercussão Geral reconhecida[8]  que, revisitando a velha e sábia Súmula 377 do STF, joga fora todo o imenso esforço da jurisprudência de outrora e da sociedade em geral, que conquistou, depois de árduo  e sensível trabalho da doutrina,  de ilustres Juizes, Desembargadores e Ministros,  o direito à meação dos aquestos por presunção absoluta de contribuição e no exato percentual da própria meação. Submeter, agora, com essa nova Súmula, consortes e companheiros, ao ônus da prova de contribuição é um absurdo abominável, sobretudo, porque, volta a gerar absoluta incerteza sobre quais seriam os meios de prova admitidos e às variadas formas de contribuição, inclusive no não remunerado trabalho doméstico, restabelecendo a inconveniente discussão sobre o peso matemático dessa ou daquela forma de trabalho, na constituição do patrimônio. E converte, de forma insensível,  questão familiar regida pelo Direito da Família, aos princípios do direito das obrigações, gerando uma profunda fonte permanente de desarmonia incompatível com a natureza sobranceira da afetividade como elemento fundamental à formação, identificação e subsistência do organismo familiar. Em síntese, um inadmissível retrocesso que espero seja corrigido pelo Supremo Tribunal Federal,  inclusive e principalmente, extirpando do nosso sistema esse regime de bens imposto para alguns, contra a tendência moderna de respeito ao caráter convencional das relações familiares, a autonomia de vontade de seus membros, a afetividade e ao princípio da boa fé objetiva.

 

Abraço aos amigos.



[1] O marido é o chefe da sociedade conjugal, o consentimento da mãe para a emancipação do filho, embora necessário, era meramente honorífico, pois prevalecia, na divergência, a decisão do pai.

[2] São várias as súmulas do STJ que acabaram canceladas pelo STF, no permanente exercício de sua função de controle constitucional da legislação federal.

[3] O novo Código de Processo Civil, no art. 927, § 4º, estabelece que “A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.”

[4] TJSP, Ap. cível n. 7.512-4 – São José do Rio Preto, 2ª. Câmara, relator o Des. Cezar Peluso, j. 18.8.1998. No mesmo sentido cf. RT 767/223 e 758/106.

[5] Curioso notar que o legislador manteve a hipótese do velho impedimento impediente, convertido em causa de suspensão, relativo à viúva ou da mulher cujo casamento se desfez por ter sido declarado nulo ou anulado até 10 meses depois do começo da viuvez ou da dissolução da união matrimonial (art. 1.523, II, do C.C. de 2002), mesmo em tempos de DNA suficiente para detectar a paternidade; mas excluiu essa causa da sanção de imposição do regime de separação obrigatória de bens (nenhuma dos incisos do art. 1.631 alude a essa causa).  

[6] Súmula n. 655 do STJ: “Aplica-se a união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum.”

[7] Lembro que a sogra da minha irmã mais velha construiu, com o marido, ambos italianos, a casa sobre o terreno que o suor de seus rostos permitiu adquirir, numa empreitada conjunta.

[8] Tema 1236/STF.

P.S. (1) A expectativa de vida nos anos 1900 no Brasil e na Costa Rica era de 30 anos apenas. Daí a justificativa por se reputar velha ou idosa uma mulher de 42 anos.


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