sábado, 31 de dezembro de 2022

MEU VELHO AMIGO - FELIZ ANO NOVO.

 

Amigo, 

"Então, eu pretendia te ligar bem lá pela meia noite para lhe desejar saúde no ano novo. Posto que[1] não temos possibilidade de um encontro e um abraço pessoal, ao menos poderíamos ouvir nossas vozes e não ficar só na leitura da mensagem de whatsapp.  Mas, considerei provável que você, no barulho que os seus filhos, genros, noras e netos estejam fazendo aí na bagunça da sua casa, no horário da  virada, com aquela chatice de cantoria do “adeus ano velho....” você não escute. Não, não venha me dizer de novo que sua audição está perfeita. Não está, como a minha também não está. Se estivesse, segundo a tese da minha mulher, não estaríamos falando alto, quase berrando. Já levei broncas verbais e chutes na canela por causa disso. Tem outra hipótese a ponderar: o seu celular pode estar no silencioso, o que, convenhamos, não é coisa difícil de acontecer. E lá virá você depois com a ladainha de dizer que alguém mexeu no seu telefone e mudou o toque. Seria um de seus genros ou noras, que não tem o seu sangue, nem a sua sensibilidade e te persegue, num boicote velado, só para você não dar mais trabalho do que dá. Pelo menos para não ficar sabendo de algum velório de amigo, porque a sua família acha que você não tem mais condições de suportar perdas nesta altura do campeonato, sem baixar no hospital, bem naquele inconveniente horário da madrugada.  Coraçãozinho fraco é o que eles pensam que nós temos, né?   Suspeito  que o melhor a lhe desejar é que esteja vivo e com saúde, na fluência do ano novo. Acho até que é tudo o que podemos almejar nesta altura do campeonato. Dinheiro, ganhar na loteria, nem pensar. Já ganhamos o suficiente para garantir o padrão de vida nosso e de nossos filhos. E que eles complementem isso e se virem porque não têm mais idade para receber intermináveis mesadas ou auxílios financeiros. E, ainda, rezar para que nossas mulheres, filhos e netos não venham programar longas viagens para o exterior, arrastando a gente para empreitadas malucas, nos obrigando a viajar por 12 ou mais horas de avião, na classe econômica[2], de máscara, arrastando malas e mais malas pelos aeroportos da vida, cheias daquele “tudo” que eles resolvem comprar, porque não tem no Brasil, ou porque aqui tem, mas é mais caro. Nos meus áureos tempos de juventude, nem pensar em viajar para o exterior. Na escola recebi autorização de meu pai, e algum pouco dinheiro, para viajar de excursão do colégio para Limeira. Destino: Visitar a festa da laranja. Uma emoção indescritível para aquele menino sonhador, que conseguiu sentar do lado da janela de ônibus e ir apreciando, encantado, a paisagem da velha Via Anhanguera, passando por Campinas, Nova Odessa,  Sumaré, Americana....  Depois, a gente comprava o que precisava, o que era indispensável, ou, pelo menos, útil. Agora basta não ter no Brasil que a gente compra. E não se admite ponderação. Conflito de geração? Você está ultrapassado, aquilo logo chega aqui, porque a tecnologia está dinâmica e aí a precoce aquisição vai lhe dar o reconhecimento de que você é um sujeito de vanguarda. Às favas com essas bobagens da juventude. Sabe, na última viagem consegui superar algumas dificuldades motoras e fui arrojado. Ainda encontrei o Alexandre Pires no Walmart. Preciso te contar, mas sei que só depois do dia 02. Vamos marcar aquele café na conveniência do posto. Eu, você e os nossos amigos de lá, dos quais estou saudoso, nem que seja para ouvir outra vez as mesmas piadas e histórias, tomar aqueles 2 cafés pausados e saborear o melhor pão de queijo do Brasil.  Hoje eu entendi aquela piada em que o feito, por maior que seja e por si só, não satisfaz o homem, senão quando ele logra contar para “a turma da Bocha”, onde deverá receber a sagrada coroa do reconhecimento. Amigo, o final do ano sempre me traz lembranças e reflexões. Este ano comemoramos os oitenta anos dos geniais, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil. E perdemos uma de nossas musas preferidas como a Gal que não teve a sorte de atingir essa marca e nos deixou de repente com as lembranças de sua voz potente, mas doce, nas letras poéticas de Fera Ferida,  Baby, Vapor Barato, Folhetim, Coração Vagabundo, Tarde de Domingo e outras memoráveis canções da extraordinária e diversa música popular brasileira.  Ah, e como considerar as perdas de dois gigantes de outras áreas: o Jô Soares e o Pelé, nossa maior referência nacional no exterior. Olhe, não sei se você tem o DVD. Eu tenho e posso lhe emprestar. Se conseguir encontrar até lhe dou de presente. “Pelé Eterno” é o melhor documentário que eu conheço da vida do “Rei”. Bom já está ficando tarde e eu estou me estendendo com a minha mania de “viajar na maionese”. Faço isso ainda hoje, em sala de aula, depois de 43 anos de docência. E ainda consulto os meus alunos: “O que eu estava dizendo mesmo?”. Sabe penso seriamente em me aposentar de vez da minha Faculdade de Direito da Puc. Não estou conseguindo, ou melhor, gostando do sacrifício de acordar muito cedo e ministrar aulas com dias e horários certos. Como você sabe sempre gostei de dormir tarde e de acordar tarde. Lembrei daquela musiquinha do Chico[3]  que diz “Eu faço samba e amor até mais tarde. E tenho muito sono de manhã.” Só fiquei hoje com a segunda parte. E convenhamos: o Chico também, pois essa história que ele vai casar ou se casou com uma jornalista muito mais nova é coisa de noticiário de fofoca. Até pode ser. Mas, funcionar ali como no tempinho da música nem com Viagra, aposto. Dor de cotovelo? Inveja? Nem uma coisa, nem outra. Nunca quis ser ou fazer o que outra pessoa é ou faz. Desse pecado não tenho que me penitenciar. Bem, estou mandando esse recado para dizer na verdade que eu quero lhe agradecer pela velha amizade e pelo fato de você continuar sendo meu amigo, apesar de mim. Li isso em algum lugar e gostei. E, ainda,  que considero que a nossa convivência, nossos encontros e desencontros, nossas paixões e pieguices, nossas diferenças, nossas formas de existir e nos relacionar,  jamais foram capazes de solapar esse sentimento que eu nutro por você. Que eu lhe desejo tudo, tudo o que for precioso não a mim, nem a todos, mas a você, respeitando sempre o seu “eu”.   Ser seu amigo, tentar cuidar de você como você tenta fazer comigo, sempre foi um constante desafio. Esse seu jeito de seguir nos seus objetivos de vida, nos seus valores e ideais, sem medo de consequências, sem acomodação, me fazem admirá-lo ainda mais. E aí damos um jeito com os processos que essa sua teimosia possa provocar. Se eu morrer antes de você, você que se foda. Em resumo, meu  amigo velho e teimoso, meu recado a ser escrito no telefone era simplesmente o seguinte:  “Passando para lhe desejar um ano que seja feliz na sua dimensão de agora. E cuidado com a tal “virada”. Não é pra nós. Ou, ao menos vamos girar devagar para não desafiar a labirintite.  Te amo, cara! Felicidades. Beijão extensivo a essa sua família linda e que eu amo.” Como ficou longo virou uma postagem para o blog..





[1] Este “Posto que” é emprestado da licença poética concedida ao Vinícius. Por que só pra ele?

[2] Já ameacei viajar na classe executiva ou primeira classe dizendo que posso pagar pela diferença e merecia esse conforto. Fui ameaçado na verdade porque pagar passagens dessas categorias para todos os membros da família ficaria uma fortuna. E a hipótese de eu ir sozinho por lá foi completamente desconsiderada.

[3][3] A faixa se denomina “Samba e Amor” e foi incluída no ano de 1.970, no álbum “Per um pugno di samba”.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

CAUSO - NOME SOCIAL

 

Boa noite amigos,

 

O velho dispensou companhia. Não quis motorista do Uber, pois não confiava nesse tipo de transporte moderno. Pediu um taxi e se dirigiu à clínica, onde, muito a contragosto, iria se submeter a um procedimento chamado colonoscopia. Com quase 80 anos, em exame de rotina, o médico da família lhe impôs o exame, tendo em vista queixas constantes de desconforto abdominal, nos últimos tempos. Buscou na internet conhecer as peculiaridades da intervenção a que se submeteria. O site dizia: “A colonoscopia é um método seguro e eficaz de examinar toda a mucosa (revestimento interno) do cólon e do reto, usando um instrumento tubular longo e flexível, chamado de colonoscópio.” Não era muito esclarecedor, mas desistiu de conhecer detalhes para não se estressar ainda mais. Chegando à clínica apresentou-se à atendente que lhe pediu documento de identidade e o cartão do plano de saúde. Ela indagou se o preparo recomendado tinha sido feito com o rigor necessário, ao que ele respondeu afirmativamente, não sem lembrar dos dois dias em que teve que fazer dieta líquida e ingerir medicamentos que lhe provocaram diarreias seguidas. Uma chatice! A moça ainda lhe solicitou que lesse com atenção um documento impresso, cujo conhecimento e assinatura eram obrigatórios. No título, em letras maiúsculas e destacadas lia-se que se cuidava de um TERMO DE CONSENTIMENTO ESCLARECIDO. E logo abaixo se seguiam Campos numerados. Campo 1, Campo 2, Campo 3, e assim por diante. A leitura rápida do texto completo lhe provocou profunda inquietação. Ali se afirmava que o procedimento poderia, embora não fosse esperado, causar lesão no abdômen e outros acidentes, inclusive fatais, sem que houvesse culpa dos profissionais envolvidos. Ficou com vontade de rasgar o tal impresso e desistir do exame. Tentou, no entanto, se acalmar e solicitou uma caneta para preencher os campos necessários. Campo 1 – Nome; Campo 2 – Nome social; Campo 3- Endereço; Campo 4- Medicamento de rotina etc. etc. etc.  Curiosamente, havia uma advertência no final, na qual se asseverava que os campos 1, 2, 3, 4 e 5 eram de preenchimento obrigatório. Meio trêmulo escreveu o nome completo no campo 1. Mas porque lhe perguntavam, no campo 2, o nome social? Tinha lido que esse tal “nome social” era utilizado por pessoas que tinham mudado de sexo biológico.  Olhou em volta os demais pacientes, os quais igualmente aguardavam a convocação para algum exame e pensou:- Será que estou em clínica errada? Será que a jovem atendente lhe entregara o documento correto e pertinente? Tomou coragem e foi ter com ela: - Por favor, é esse mesmo o documento que eu tenho que preencher e assinar? A senhora sabe que eu vou fazer uma colonoscopia? Ela respondeu afirmativamente a ambas as indagações. E aí vem uma terceira:- Sou obrigado a preencher os campos 1, 2, 3 e 4 como está aqui? Ela acenou com a cabeça indicando positivamente. Inconformado ele voltou ao seu lugar, sem saber que atitude tomava. Nisso surge uma enfermeira e o chama pelo nome. Era hora de ingressar na sala de procedimento. Voltou-se para a atendente  e perguntou se  poderia completar o documento, após o exame. Ela disse que não. O termo tinha que ser assinado antes. Impaciente, apavorado, mas resignado tomou coragem e fez a seguinte e última indagação em tom de advertência: - Olha moça, eu tenho quase 80 anos,  não tenho e nunca tive nome social, não mudei de sexo,  porque sou obrigado a preencher o campo 2, como a senhora disse?  Veio a resposta serena da jovem: - Não precisa ficar nervoso.  No campo 2, basta o senhor escrever:-  Não tenho.  – Ah, bom. Pediu um minuto para a enfermeira, completou o campo dois e entrou para o exame rezando baixinho para que o tal colonoscópio não lhe furasse o intestino.

Até mais amigos.