Boa noite amigos,
O mundo se chocou com o atentado que vitimou doze pessoas,
deixando lesões corporais em outras dez, em Paris, nos primeiros
dias deste ano de 2.015, cometido por jovens
franco-argelinos fundamentalistas
e justificado como represália a cartunistas e jornalistas da revista satírica Charlie
Hebdo, pela publicação de charges satirizando o profeta Maomé. O ato de terrorismo e suas consequências evidentemente foram
lamentados e censurados em todo o Ocidente, pelo seu despropósito e barbarismo,
não havendo voz que se levante para sustentar a razoabilidade e
proporcionalidade da resposta que os fanáticos pretenderam dar àquilo que
consideraram uma provocação e uma heresia. Logo, entre movimentos populares e
políticos vindos de todos os continentes, surgiu um jovem compositor francês
que, pela Internet, postou um vídeo com sua música feita para homenagear os
artistas mortos no atentado. A balada sentimental,
questionando a irracionalidade do ato, acaba com uma frase que se tornou,
rapidamente, bordão em todos os meios de comunicação, inclusive e principalmente nas redes sociais: Je suis Charlie!
(Eu sou Charlie). O Je suis Charlie
ganhou também as ruas, os cartazes, o coração dos homens de bem, em profunda
solidariedade com as vítimas. Anteontem,
na cerimônia do Globo de Ouro, o segundo mais importante prêmio de cinema
americano, vários dos contemplados reproduziram o bordão
“Je suis Charlie”, em discursos e cartazes. Não vi, porém, a não ser aqui e acolá, manifestação
questionando o direito de editores e jornalistas do meio de comunicação, de ofender católicos, judeus ou muçulmanos, com suas anedotas e desenhos. Destaco, porém,
alguns lúcidos artigos e entrevistas que acompanhei e endossei. O Delegado
aposentado e professor de Direito, Carlos Alberto Marchi de Queiroz, escreveu
um excelente artigo intitulado Tragédia Anunciada, na edição de 3ª.
feira, 13 de janeiro de 2.015, do jornal Correio Popular, de Campinas, e que
circula por todo o Estado, por meio do qual questiona a realidade
sociopolítica francesa e o seu envolvimento com os lemas da Revolução Francesa. Observa o articulista que o direito constitucional francês garante a liberdade de expressão
de forma ilimitada e que, sob esse manto, a revista, especialmente depois do
atentado à bomba sofrido quatro anos antes, “não poupa, em suas charges, de
forma contundente, expoentes cristãos, judeus e muçulmanos. Edições da revista
estamparam em suas capas a Virgem Maria, em trabalho de parto, dando a luz ao
Menino Jesus, o papa Francisco, no Rio, vestido de cabrocha, o profeta Maomé,
em situações inusitadas, assim como figuras históricas judaicas em
comportamento incomuns, desconsiderando valores cristãos, judeus e muçulmanos,
de pesos diferentes cuja tolerância religiosa é tão flagrante quanto o azeite
na água.” Em entrevista concedida à
repórter Elaine Trindade, coluna “Mônica Bergamo”, da Folha de São Paulo, a
francesa Alexandra Baldeh Loras, de origem muçulmana e judaica, que vive no
Brasil como consulesa de seu país em São Paulo, analisou com propriedade a
contradição entre essa França supostamente acolhedora e plural, como
se define e difunde, e o
distanciamento, preconceito e
depreciação que os franceses tradicionais manifestam em relação aos
estrangeiros, inclusive aqueles oriundos de suas ex-colônias, que fingem
abraçar incondicionalmente e contra os quais se cometeram atrocidades no
passado. E considera que a França ainda precisa se assumir como
nação multicultural e multirracial para
evitar que alguns de seus filhos de ascendência árabe e africana sejam adotados
pelo terrorismo. Lembrou ainda que quatro dias antes do atentado em Paris, o
grupo Al-Quaeda cometeu outro atentado, com um carro-bomba no Iemen, que matou
37 pessoas. Mas o mundo praticamente não tomou conhecimento desse ato e nem
revelou solidariedade às vitimas e familiares. Por quê? Pessoas de segunda
classe? De terceiro mundo? Caros amigos, é indiscutível que a religião é assunto de vida privada, competindo a toda Nação que se diz democrática, a garantia de liberdade de culto. Por outro lado, é indispensável que o Estado moderno, dito democrático, ao garantir o direito subjetivo de cada cidadão de professar ou não qualquer religião, se liberte das amarras de seus fundamentos. O laicismo do Estado é, ao lado do respeito ao direito individual de crença ou descrença, um dos fundamentos do Estado da pós-modernidade. Mas, ao consagrar a liberdade de
culto e se afastar de influência de qualquer deles, enquanto Estado, zelando para que os extremismos não comprometam o direito de autodeterminação ligado à profissão de fé, esse mesmo
Estado tem que regrar a liberdade de expressão, que não pode ser ilimitada, a ponto de permitir que se ofendam valores, dogmas e sentimentos religiosos ou laicos de quem quer que seja. Mario Vargas Llosa, escritor, dramaturgo e jornalista peruano, Premio
Nobel de Literatura em 2.010, um intelectual confessadamente liberal, defendeu,
em artigo publicado pelo jornal El País, de Madri, em junho de 2.003, o direito
do governo francês proibir o uso do véu islâmico nas escolas públicas, justamente em nome
da liberdade, por paradoxal que possa parecer, argumentando que “os direitos humanos e as liberdades públicas e
privadas garantidas por uma sociedade democrática estabelecem um amplíssimo leque
de possibilidades de vida que possibilitam a coexistência em seu seio de todas
as religiões e crenças, mas estas, em muitos casos, como ocorreu com o
cristianismo, deverão renunciar aos extremismos de sua doutrina - monopólio, exclusão de outro e práticas
discriminatórias e lesivas aos direitos humanos – para ganharem o direito de
cidadania numa sociedade aberta”[1].
E é exatamente o equivocado extremismo de uma garantia constitucional ampla e
irrestrita de liberdade de expressão, que também não pode ser admitida, num
mundo em que liberdade e respeito podem e devem
coexistir. Por fim, em entrevista concedida hoje, o Papa Francisco, sem aludir especificamente ao episódio (e nem
precisaria, obviamente) sustentou que ninguém tem o direito de ofender ninguém, em nome
da liberdade de expressão e proibição de censura. E ilustrou o seu argumento, provocando o jornalista: Se você ofender a minha mãe, provavelmente
eu lhe darei um soco. O “Je Suis Charlie”, portanto, antes de refletir um
repetitivo bordão em solidariedade à vida dos jornalistas e chargistas franceses mortos, e em protesto contra o absurdo do ato terrorista, é perfeitamente
aceitável. Mas para legitimar uma liberdade de expressão que não cede, nem encontra limites mesmo na ofensa, na provocação, no insulto, na sátira a deuses e
profetas, dogmas, crenças e fés, não pode ser endossado. Nenhum direito é ilimitado, num mundo que pretende ser justo e democrático. A liberdade de expressão, portanto, tem que ser exercida em consonância com as exigências éticas e respeitar, por isso, valores individuais e sociais que as nações mais avançadas do mundo, dentre as quais a França, assinalam e garantem, tanto quanto a liberdade de expressão, como integrantes do rol dos "direitos humanos".
Até amanhã amigos.
P.S. (1) A imagem da coluna de hoje é de atores e atrizes exibindo cartazes de solidariedade às vítimas e à revista, durante a cerimônia da entrega dos prêmios do Globo de Ouro e foi emprestada de www.mirror.ao,uk.
P.S. (2) Muitas das imagens que vi na Internet reproduziam as charges ditas ofensivas. Por razões óbvias, não escolhi nenhuma delas para ilustrar a coluna.
[1] O artigo está publicado na página 92 da 1a. edição do livro A civilização do espetáculo – uma
radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, de autoria do autor,
traduzido por Ivone Benedetti e publicado pela Editora Objetiva, Rio de Janeiro.
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