domingo, 22 de março de 2015

CONTO - VAI DIRCE!



Boa noite amigos,

O jogo de cartas era uma das nossas mais freqüentes diversões naqueles anos pouco dourados do final da década de 70, início dos anos 80. Cena comum: em volta da mesa, o Miltão e a Sely quebravam o pau o tempo todo, um reclamando da eventual incompetência do outro quanto ao cumprimento da estratégia de jogo, ou, não houvesse motivo palpável, pelo azar, naquela tarde ou naquela noite. Mas as duplas eram cuidadosamente formadas, por causa da suspeita – muitas fundadas, diga-se de passagem – de que nem sempre marido e mulher falavam a mesma língua no jogo de “buraco”. Um era mais concentrado, o outro mais esperto, um não prestava atenção no descarte, outro no que estava na mesa, preferindo “comprar”[1] uma carta muito pior em matéria de aproveitamento, e assim por diante. O Nenê e a Dirce formavam uma das duplas (marido e mulher), amigos do Miltão e Sely dos tempos de Piracicaba, e que, por via destes, também se tornaram nossos amigos. A Dirce fumava muito e sorria o tempo todo. Calma, não prestava atenção no jogo, o que irritava o parceiro, mas fazia a “festa” dos adversários, que vibravam quando ela descartava justamente a carta que dava “canastra” ou para ela (e ela não tinha visto), ou para a dupla adversária (que pegava imediatamente a mesa e agradecia a gentileza). Mas a Dirce era querida. Por mais que não pareça lógico (pois no fim  entregava a vitória para o inimigo),  ela demorava muito para jogar, nunca sabia quando era a vez dela e aí todo o resto do pessoal invariavelmente tinha que lembrá-la o tempo todo: - Vai Dirce! é a sua vez. – Vai Dirce, descarta, pô! A coisa era tão comum que o Miltão estendeu o  “Vai Dirce!” para todo e qualquer jogador que eventualmente estivesse distraído ou demorasse muito para descartar. Era um tal de “Vai Dirce!” gritado coletivamente,  que todos nós experimentamos um dia, pelo menos uma vez, o fenômeno ou o efeito “Vai Dirce!”. A Dirce não ligava. Ria e continuava na dela. Quando então, por essas coisas aleatórias da sorte, apesar de jogar mal, estava ganhando e se demorava (e ela sempre demorava), para jogar, conforme o humor do adversário, era acusada de “tripudiar sobre o cadáver.” Além do que todos consideravam que perder para a Dirce era uma desonra. Ou, no mínimo, um atestado de burrice. E a sua alegria permanente, aliada à desgraça do adversário, sugeria que se deveria mandar ela tomar naquele lugar, no mínimo.  Mas acho que ninguém chegou a tanto. Não sei se a Sely, que era a mais esquentadinha, algum dia  estendeu o dedinho indicador para ela, num vai tomar no.... coreografado”. Os tempos se foram. As duplas de parceiros amigos se desfizeram. Ficamos velhos e saudosos, mesmo dos tempos difíceis. Não vi mais o Nenê e a Dirce, acho que por uns 20 anos. Outro dia o Miltão me falou que a Dirce morreu.  Não quis saber de detalhes, porque eles não interessam, evidentemente, nessa hora. Mas parece que entre o mal e o falecimento não demorou muito. Ao contrário da vida lenta e saboreada, a Dirce deve ter tido uma morte rápida e definitiva. O que ficou dela para mim foi exatamente essa alegria de viver, esse pômeufalasérioojogoédebrincadeiraeeunãotônemaí@com.brE supus, na minha fértil imaginação, a seguinte cena:  Dirce chegando ao paraíso recebida por São Pedro[2]. Distraída, alegre, sem dar conta que ganhara o reino do céu no rápido julgamento que se fizera antes de sua chegada, morosa como sempre. E tão morosa que São Pedro, impaciente, já tendo perdido o primeiro gol do Messi no jogo do Barcelona pela Copa dos Campeões Europeus, não agüentou:  - Pô Dirce, Vem ou não vem?  Quer saber de uma coisa?: “Vai  pro inferno!”. Mas dizem que até hoje a Dirce nem entrou no céu, nem chegou no inferno. 

Até mais, amigos.

P.S. A imagem da coluna de hoje é do quadro do pintor francês Paul Cezanne, o terceiro da série Jogadores de Cartas,  (Le Joueurs de Cartes, em francês),  que o artista pintou entre 1.890 e 1.895. O famoso pintor pertenceu a três movimentos estéticos: Impressionismo, Pós-Impressionismo e Arte Moderna. A tela encontra-se no Museu de Orsay, em Paris.






                                                  




[1] “Comprar” na linguagem do jogo de baralho significa rejeitar a carta ou cartas que estão na “mesa”, preferindo o jogador adquirir a primeira do monte de cartas à disposição, cuja identidade não era conhecida (quanta emoção!).
[2] Dizem que é ele que recebe a gente quando e “se” a gente for pra lá. Não sei porque. Mas suponho que deva ser porque ele foi o primeiro Papa. Que para ele foi dada a chave. E que essa chave deve abrir não só as portas do Vaticano,  mas também  as portas do céu.

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