sábado, 25 de novembro de 2017

LINGUAGEM JURÍDICA - CAUSAS & CAUSOS



Sátira do cartunista francês Honoré Daumier mostrando

o mais absoluto desinteresse dos membros da Corte -
Francesa pela sustentação oral do advogado. Qualquer
semelhança  com a situação verificada nos Tribunais
Brasileiros de hoje não é mera coincidência. Imagem
emprestada de CGN.
 
"A simplicidade é a medida exata entre o de menos e o demasiado” Joshua  Reynolds. 

Boa tarde amigos, 

Como hoje é sábado, dia de pegar leve, mando um conto que satiriza a linguagem rebuscada dos Tribunais, em confronto com a simplicidade do linguajar coloquial, do dia-a-dia da população brasileira, destinatária das decisões judiciais. O "causo" foi publicado no meu livro "Causas & Causos" n. 1, em 2.006, pela Editora Millenium, de Campinas (SP). Aí vai:

                                                                 " Não bastasse o movimento geral e cada vez mais intenso pela chamada “efetividade” da Justiça Brasileira, num país em que se reclama tanto de sua morosidade, agora cresce o apelo pela simplificação da linguagem jurídica.

A Associação Brasileira da Magistratura (AMB) saiu à frente e já pensa num projeto de lei que proíba, em todo território nacional, a utilização de termos técnicos complexos, principalmente quando vertidos no saudoso e bom latim, ou em outra língua estrangeira contemporânea.

Acredito que a proibição não vai incluir o inglês que é uma espécie de segunda língua-mãe, pelas implicações que o veto traria (dificuldades, sobretudo para substituir palavras novas que se usam e se grafam como no Reino Unido ou em Nova York).

Ao invés de “delete”, você terá que usar o “apague” ou “mate”, ou talvez “mande para o espaço”. E como será dar um download em português (aguarde, estou baixando o arquivo). Feio né?

É possível até que se estabeleça alguma penalidade para a transgressão, mas eu sugiro que, se houver mesmo sanção, ela possa, como no direito penal, variar de acordo com a natureza da infração, isto é, dever-se-á (mesóclise?) admitir as formas dolosa e culposa do delito.

 Ipso facto (???),  deverão ser inseridos num novo capítulo a ser aberto na parte especial do Código Penal,  sob o rótulo de algo assim como  “Dos crimes contra a Inteligibilidade”.

 Gente da minha idade e da minha área de atuação, viciada nessas expressões, por certo vai cometer involuntários deslizes, mormente (olha aí, alguém fala mormente hoje em dia?), em encontros de advogados, juízes, promotores e outros tantos profissionais hoje chamados de operadores do direito.

Convenhamos! O movimento tem fundamento. É muito mais lógico e compreensível dizer “com  respeito ao seu ponto de vista”, ou  “em princípio” aceito a sua argumentação, do que “data venia” de Vossa Excelência, ou “a priori”, não se pode concluir tal coisa.

Mas como toda boa tradução, é preciso redobrado cuidado para que as palavras ou  texto não sejam maculados (seria melhor eivados?). Será indispensável, creio, que o sentido técnico seja preservado.

Afinal, “fundo de comércio” não pode ser confundido  com  “quintal de armazém”, “vara de menor” com “pinto de criança” e nem fica bem tomar  “retificação de assento”  por  “plástica de bunda”.

Não sei se todo esse movimento vai mesmo dar certo e se a gente comum, o povão da comunidade, a galera, como se diz no vasto vocabulário da juventude, será capaz de entender que, apesar da simplificação da linguagem, isso não vai, por si só, resolver a questão da lentidão da justiça e suas causas crônicas.

Estou convencido, no entanto, que muitas surpresas e perplexidades devam desaparecer.
Há menos de duas semanas deu-se um caso curioso e engraçado. E comigo mesmo. Era tarde de segunda-feira e eu, religiosamente, cumprindo compromisso moral assumido com um dos Juízes Cíveis da Comarca de Campinas, servia como conciliador nas audiências designadas para aquela data.

O primeiro processo era simples. Tratava-se de uma ação de cobrança de taxas de condomínio em atraso.

O advogado do condomínio, zeloso, ciente de que, embora o apartamento tivesse sido vendido, há muitos anos, pelo casal que o adquirira primitivamente, não  se outorgara escritura definitiva, intentou a ação contra os dois casais, os promitentes vendedores, tecnicamente ainda condôminos,  e os promissários compradores.

É que havia entendimento jurisprudencial que, nesse caso, de contrato de compromisso não convertido em escritura pública, o condômino continuava a ser o titular do domínio, como consta do Registro de Imóveis.

O casal vendedor foi citado às vésperas da audiência e compareceu desacompanhado de advogado.

Era um fisioterapeuta e uma dentista, os quais não conseguiam entender a razão de terem sido convocados. Ora, o tal apartamento já não era deles  há uma década.

Fiz um gesto no sentido de dar a almejada explicação.

Mas o referido advogado, muito solícito, pediu licença para me interromper e, dirigindo-se a eles, disse em bom tom:

- Olhe meu senhor, eu fui obrigado a colocar o senhor e a sua mulher no pólo passivo da relação processual...

O homem levantou as sobrancelhas.

E por um instante tentei adivinhar o que se passava na sua mente.


 Deve ter pensado – Será que isso dói?

Ou então:

-  Eu vou pedir a gentileza de tirarem a minha mulher desse negócio.

Mas antes que da surpresa se passasse ao pânico, intervim:

- Com licença, doutor. Não assuste o homem.

E agora voltando para o casal de vendedores:

- O doutor quer dizer que foi obrigado a mover a ação também contra vocês dois, porque não houve escritura passada e nem registro no registro de Imóveis. Mas fique tranqüilo. Os ocupantes do apartamento, os adquirentes, já se propuseram a pagar as taxas em atraso, mediante acordo.

- É só isso? Indagou o fisioterapeuta evidenciando alívio.

-   É.

 Riso geral e descontração no até então sisudo ambiente da sala de audiências.

Mas eu acho que esse homem e essa mulher vão pedir para subscrever um eventual abaixo-assinado que aparecer por aí, pedindo o tal projeto de lei, que proíba, sob sanção severa, o uso de termos jurídicos estranhos."


Até mais amigos,


P.S. (1) Honoré Victorien Daimier (1.808/l.879) foi um caricaturista, chargista, pintor e ilustrador francês, considerado o "Michelângelo da Caricatura". A linguagem de sua charge e caricatura foi caracterizada pela crítica social e política de sua época e lugar. Por elas denunciava os grandes detentores do Poder  (reis, Juízes, Clero) e o despotismo contra o povo em geral, o que lhe rendeu condenações e prisões.













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