sexta-feira, 21 de setembro de 2018

CRÔNICA - POU - A MORTE ANUNCIADA



Boa noite amigos, 

Olha aí o Pou. Pelo jeitão bem alimentado e com as neces-

sidades satisfeitas. Imagem emprestada de Pou v.1.4.12.
Lá em casa, como de resto acontece no mundo inteiro, todos têm seu celular individual, com exceção da gata e de meu neto Rafael, que completou 6 anos e já está reivindicando o seu.  Hoje, um sujeito sem celular não constrói história, nem sequer tem identidade reconhecida junto à  família e à comunidade. O celular é o objeto do desejo de toda criança, de todo adolescente, de todos os adultos. independente do gênero, que nem sei se existe ainda, e até dos velhinhos da terceira idade. É a coisa, objeto ou gente, sei lá, como vai ser considerado doravante, com que ou com quem o indivíduo mais se relaciona  (conecta, na linguagem da era digital). Experimente andar pela rua e observar as pessoas dentro e fora das casas e estabelecimentos. Asseguro a vocês que de dez indivíduos, os dez estarão olhando para o celular[1], ignorando o que passa à sua volta, inclusive os seguranças que são pagos para vigiar e, amiúde, permanecem mergulhados nos sites, redes sociais ou na internet, pouco percebendo o que se passa no seu entorno. Pois bem, lá em casa, voltando ao assunto, não preciso dizer que o que menos tem familiaridade com o objeto sou eu, que  faço uso dele, por isso mesmo, com a parcimônia que me é permitida (embora minha mulher garanta que eu uso tanto ou mais que ela própria, afirmação que, vinda de quem tem o maior interesse na conclusão, não merece crédito algum). Meu neto, aproveitando-se da generosidade do avô, vem ultimamente me pedindo o celular para usar. Contando com a complacência dos pais, que preferem nitidamente que ele monopolize o meu aparelho do que o deles (dos quais também não desgrudam),  baixa determinados aplicativos com os joguinhos de sua preferência. Não é que outro dia, sem que eu soubesse ou fosse comunicado, baixaram um jogo que consiste num bicho chamado POU, que deve ser alimentado (com comida virtual, sei lá) e cuidado,  regularmente (me disseram até que tem que levá-lo ao banheiro para que ele urine e defeque).  Quando não recebe os cuidados cotidianos, começa a murchar, até que, ávido de fome ou necessidades  não satisfeitas, sucumbe.  E é um tal do Rafa, logo que chega na minha casa, pedir o celular. É um tal da mãe dele, minha filha, também fazer o mesmo e dar uma desculpinha qualquer para não usar o dela (esqueci; o meu está sem bateria; é rapidinho, etc.) e ninguém me contou porra nenhuma. Hoje fui almoçar com minha filha. Terminando o almoço ela me pediu o celular. Para que? Perguntei. Para ver como está o Pou. Que Pou? O Bichinho do jogo. Aí baixou o tal aplicativo e me apresentou o distinto, que já estava triste e cabisbaixo. E em seguida me deu uma bronca: - pai você precisa alimentar o Pou. Olhe ele está abatido e esfomeado. Se você não der comida a ele, morre. Era só o que me faltava. Ter que dar comida e levar o bicho virtual para as necessidades fisiológicas (tem mesmo tais necessidades? Fala sério?). Ter que lembrar  de baixar  o bendito aplicativo, perguntar para o Pou como ele vai, o que ele quer comer hoje, se quer ir ao banheiro etc.. Já estou sonhando com isso. Ninguém merece! pensei com os meus botões. De todos os meus compromissos e preocupações vou ter que lembrar ou agendar, quem sabe, diariamente, uma visitinha para o Pou, com o objetivo de vê-lo e saber como ele está. Por que se eu não fizer, ninguém mais vai fazer, com a desculpa de que o celular é meu e eu sou responsável pelo que acontecer. Já aviso os meus amigos que se o Pou morrer, a culpa não é minha. Quem pariu Pou que o embale, para usar uma expressão antiga e sábia. E se eu não conseguir assim mesmo a absolvição, pelo menos vou tentar uma desclassificação para homicídio culposo, aquele que a Globo diz que é sem intenção de matar. E vou invocar a minha primariedade e o meu direito a sursis pelo prazo de quatro anos, tendo em vista a minha idade. Socorro! Cadê o Estatuto do Idoso?  

Boa noite amigos.

























[1] Superando a estatística do sabonete Lux que na minha época exibia uma propaganda,  com um bordão, segundo o qual, nove entre dez estrelas de cinema usam lux.

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