A Nina morreu. Quem me comunicou aos
prantos foi minha filha. A Nina era uma gata que há 15 ou 16 anos foi adotada
por nós, por insistência de minha filha. Ainda com poucos meses de vida a
gatinha estava sendo oferecida numa feira, para adoção, na cidade litorânea de
Bertioga. Nunca tive paixão por animais. Se quisesse conviver com um
talvez optasse pelo cachorro que, segundo a literatura e a experiência
dos donos, é mais amoroso e fiel, ao contrário do gato, em regra egoísta
e mal agradecido. Deve ter alguma virtude, mas confesso a minha ignorância e o
meu desinteresse pelo assunto. Pois bem, vindo conosco para Campinas quem
cuidava mesmo dela era minha sogra, que sempre morou conosco até falecer.
Pessoa de muitas virtudes e solidária,Dona Geny não deixava faltar nada ao bichinho. Alimentação diária adequada, segundo os
nutricionistas. Passeios matinais dentro do limites do condomínio ou pelas
redondezas. E carinho, muito carinho. Com a morte da sogra, a
função foi assumida por minha mulher, cuja dedicação supriu necessidades
materiais e afetivas da felina. Quanto à minha filha, mãe adotiva, não preciso
dizer que se casou, mudou, mas deixou a Nina sobre nossos cuidados, avós maternos
e eternos provedores. Bem, resumindo: depois de uma vida de recursos e tranquila,
a Nina teve, anteontem, uma parada respiratória logo após uma cirurgia
para extração de nódulos decorrentes de um suposto câncer. E a
veterinária garantiu que a cirurgia foi bem sucedida e que a parada respiratória ocorreu depois, durante a recuperação. Foi mesmo? Estou em
dúvida. A vida da Nina, a gata, foi boa?
Outra dúvida.Teve alimentação farta e
adequada e carinho dos seus donos. Mas também foi castrada e morou dentro dos
limites de apartamentos e casas. Uma
vida sem liberdade, sem aventura, sem filhos, sem parceiro ou sexo. Uma vida
que a ela foi imposta contra a sua natureza animal. Nunca
concordei com a maneira como os homens tratam os bichos. Pensei, como homem da
lei, em invocar, por analogia, em benefícios dos animais submetidos a essa vida
encarcerada, o princípio da dignidade da pessoa humana (no caso, felina). A liberdade ē um direito fundamental e
inalienável e deve ser estendida aos animais, porquanto vinculada à natureza de
um ser vivente, um semovente, que não precisa de ninguém para existir. Ninguém pode ser feliz sendo forçado a
sublimar a sua natureza. Outra coisa: da mesma maneira que os avanços da
medicina, da engenharia genética, da nanotecnologia, permitem hoje que a vida
humana se prolongue,é quase certo que
teremos um câncer, em qualquerde
seus tipos, depois de 80 anos. Trata-se
de uma contingência igualmente vinculada à natureza humana. Gastamos, como
gastam as máquinas. O corpo, a única forma com que existimos neste mundo,
envelhece e as suas engrenagens tão bem concebidas, começam a falhar e a não
funcionar como e para o que foram programadas. Nem
venham dizer que se você fizer exercícios regulares, tomar vitamina, não comer
carboidratos ou proteínas, não fumar, não beber etc etc. você ficará livre
disso. Tenho múltiplos amigos que nunca fumaram, nem beberam, fizeram exercícios, e
já se foram desta vida. Alguns vítimas de acidentes (vascular cerebral ou de
trânsito). Pior que oatropelante nem
quis saber do estado de saúde de sua vítima, se era gorda ou magra, jovem ou velha,
se o colesterol estava alto ou baixo, se era pobre ou rica.
Nenhum cuidado exagerado que possamos
ter se justifica se subtrair de nós,a
liberdade e o direito de viver ou ser feliz, segundo a nossa maneira de ser e
existir. Bem, voltando ao nosso tema, Se a vida da Nina foi boa? Dizem que foi.
Eu discordo. E ela não teve como se manifestar a respeito. Resta-nos a dúvida insuperável. Tudo bem que, da forma como foi tratada (comida à vontade, de boa
qualidade e farta, sombra e água fresca) a presunção seria de que a vida dela
foi boa mesmo, porque quem é que não gosta dessas coisas. Mas, cuidado!
Lembrem-se da advertência do saudoso Bernard
Shaw: “Não faça aos outros, o que
gostarias que fizessem a ti. O gosto deles pode não ser o mesmo.” A Nina
morreu. E com ela a incógnita de saber se ela achou que a vida dela foi boa ou
não. Mas será que gato “acha” alguma coisa?
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