Boa tarde amigos.
Eu a encontrei anteontem por acaso. O mesmo acaso que me fez reencontrá-la, em duas outras oportunidades distintas, nos últimos cinco anos. Uma na sala de espera de um banco, no Cambuí; outra no restaurante Estação Mogiana; agora, na véspera do dia dos professores, na padaria do shopping da Riviera de São Lourenço, em Bertioga, zona norte do litoral paulista. A sua expressão jovial, os seus olhos de um azul brilhante e o sorriso largo continuam belos e inconfundíveis, a despeito do longo tempo decorrido desde o ano de 1963 quando, com apenas 24 anos de idade, ela passou a lecionar Geografia no Colégio Estadual Barão de Ataliba Nogueira, no bairro do Taquaral, em Campinas. Extremamente rigorosa, exigia disciplina e aplicação de seus alunos, dentre os quais, euzinho, um menino de 11 anos, miudinho, tímido e preocupado em atender as exigências do curso ginasial, sem prejuízo do auxílio que eu e meu irmão deveríamos prestar aos nossos pais, no comércio que nos mantinha. Numa das aulas, como sempre, entrou e fez chamada. Em seguida, passou a cobrar dos alunos, carteira por carteira, a entrega de um trabalho de pesquisa que tinha encomendado na aula passada. Eu, doente, acabei me ausentado da aula anterior e não fiquei sabendo da tarefa. Em consequência, não a realizei. Conforme ela se aproximava assustado, pensava como iria pretextar pela ausência no cumprimento do dever de casa. Não tive muito tempo, nem imaginação. E havia ainda a questão que eu não gostava de mentir, porque a professora de catecismo garantia que era pecado grave. Quando em pé, na minha frente, ela esticou a mão direita, cobrando o exercício, depositando sobre minha pequena pessoa aqueles arregalados olhos azuis, disse, em tom baixo o suficiente para que meus colegas não ouvissem, que não realizara o realizara porque tinha faltado na aula anterior e “ninguém”, isso mesmo, “ninguém”, tinha me avisado. Ela recolheu as mãos, me olhou fixamente com olhar de reprovação e disparou: - Ah, ninguém avisou o senhor? E quem é que o senhor pensa que é, o rei da Inglaterra? Todos os colegas obviamente ouviram a bronca; alguns, cruéis, riram para aumentar a minha vergonha. Limitei-me a pedir desculpas, em meio à promessa de que a ausência do trabalho refletiria na minha nota final. Sonhei durante muito tempo com Dona Suzete me mandando para uma grande fogueira. Ela, vestida de bruxa, em meio a gargalhadas tenebrosas, gritava, enquanto o fogo me consumia: - Você pensa que é o rei da Inglaterra? Vire-se agora. Entendi cedo o recado. Foi a descompostura mais pedagógica que recebi. Ela me ensinou que nada somos nesta vida, que temos que ter humildade, que precisamos correr atrás dos nossos interesses; que ninguém tem o dever de nos comunicar a respeito do que aconteceu ou deixou de acontecer, quando deveríamos estar presentes e não estávamos, por qualquer razão que seja; que não temos o direito de invocar dificuldades de ordem subjetiva, por mais inevitáveis que sejam, para justificar a ausência no cumprimento de nossas obrigações. O tempo passou. Fiquei surpreso quando soube circunstancialmente que um advogado que eu conhecera era casado com a Dna. Suzete. Isso por volta de 1987, quando eu já era juiz substituto em Campinas. Soube depois que ela ficara viúva, ainda relativamente jovem. O marido contraíra uma doença grave, não sei bem se era um câncer, e rapidamente falecera. Nunca mais reencontrei Dona Suzete até cerca de cinco anos num banco da Rua Coronel Quirino. Logo a reconheci; ela, obviamente não. Mas se mostrou muito alegre em reencontrar um ex-aluno. Contei a ela do episódio que me marcara para toda a vida. Ela ouviu, meteu as mãos sobre os olhos fechados, num gesto próprio de quem está envergonhado. E justificou, pedindo desculpas pela grosseria, garantindo que a sua intolerância naqueles tempos tinha ficado para trás e devia ser debitada à conta de sua juventude. Com a maturidade, porém, havia se tornado uma pessoa mais flexível e mais doce. Realmente, era possível sentir essa doçura quando falou dos filhos e dos netos; do marido que cedo se foi, deixando-a com os filhos, ainda não criados; dos colegas de docência e da vida em geral. Voltei a reencontrá-la no Estação Mogiana, uma churrascaria muito concorrida da cidade de Campinas. Estava com a irmã e pouco pudemos conversar. Anteontem ela estava sozinha e eu lhe apresentei minha mulher, minha filha, meu genro e meu netinho Rafael, de 9 anos. Ele ficou curioso ouvindo a nossa conversa e lhe contei que ela tinha sido minha professora quando eu tinha 11 anos e me deu uma bronca, porque não fiz um exercício. Ele sorriu para ela e olhou para mim com olhos de censura. Rimos muito. Aos 82 anos de idade, Dona Suzete é uma lenda para mim. Saiu dali sorrindo, agradecendo a vida, a vacinação, a possibilidade de retorno aos encontros, mesmo com máscara e da viagem para a praia, onde se encontra acolhida em casa de uma irmã, aproveitando, como enfatizou, “para cozinhar para todo mundo”, uma paixão que adquirira há não muitos anos. De minha parte já não tenho mais os terríveis pesadelos da juventude com a bela professora de Geografia me punindo com o inferno por não ter realizado um exercício. Nem lamento por não pertencer à família real inglesa. E que ninguém é ninguém e não pode ser culpado de nada, nunca, por nós. Porque o único sujeito ativo determinado nessa sucessão de pronomes como “ninguém”, “nada”, “nunca”, somos “nós”, certo? E que devemos assumir as consequências de nossas ações, omissões e escolhas que fazemos na vida, pelas quais somos os únicos responsáveis. E ir corrigindo, sorrindo, pois é vida que segue.....
Afetuoso
abraço amigos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário