quinta-feira, 30 de junho de 2022

VAROA OU VIRAGO.


“E o Juiz dirigindo-se ao divorciando indagou: É o senhor o cônjuge varão? O distinto, meio encabulado, respondeu: Não doutor, infelizmente eu sou é o marido traído.”



Boa noite amigos,

Outro dia a opositora de um cliente nosso, não satisfeita com a minuta de redação do acordo que celebramos relativamente à partilha dos bens do casal, discordou das expressões que se referiam a ela como “divorcianda” ou simplesmente “mulher”, pleiteando a substituição por “cônjuge virago”. Pois bem, atendida a exigência, dando tratos à bola, viajei no tempo e fui me recordando das antigas tertúlias de especialistas ou não, a respeito de certas expressões que se tornaram comuns na linguagem coloquial e sua aceitação pelos tradicionais dicionários e regras gramaticais dessa complexa língua portuguesa. Como advogado, atuando com grande ênfase no direito de família, fui me acostumando com palavras até então ignoradas, mas que lia em petições, pareceres, despachos e sentenças. É que, nos processos de desquite, posteriormente de divórcio, era comum ver referência tanto a varão (substantivo masculino para designar o marido), quanto à varoa ou virago, relativas à mulher ou esposa. Em certa ocasião, porém, fui advertido para que não usasse cônjuge virago, mas sempre cônjuge varoa. E a explicação me veio de forma simples e direta: - virago é mulher macho, mulher que tem hábitos masculinos. Daí por diante tentei evitar o seu uso. Agora, novamente instado a alterar a redação, por exigência da parte adversária no processo, para substituir  mulher e divorcianda por cônjuge virago fui consultar os meus dicionários. No volume V do Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa de CAUDAS AULETE, VAROA é registrada  como sinônimo de mulher, fêmea de varão. E no sentido figurativo como mulher esforçada, destemida.  Finalmente, por extensão como Heroína e feminino de varão[1]. E para VIRAGO  como mulher que tem estatura, voz, aspecto, maneiras de homem.[2] Colhe-se de  trecho da obra  MARIA DA FONTE: “Foi a Maria da Fonte a personificação fantástica de uma coletividade de amazonas de tamancos, ou realmente existiu, em corpo e fouce roçadoura, uma virago revolucionária com aquele nome e apelido?[3] Já no Dicionário da Língua Portuguesa de MICHAELIS, o termo VIRAGO, é registrado como (1)   feminino de varão; (2) mulher esforçada, destemida; (3) mulher muito forte e de maneira varonis; marimacho.[4] Acredito, assim, que, a partir de uma praxe equivocada na utilização de virago como feminino de varão,   o léxico passou a ser ampliado para admissão dessa forma como equivalente ao feminino tradicional de varão, embora continue o termo também a se referir ao seu sentido originário, destacado pelos dicionários antigos. O leitor haverá de fazer a distinção unicamente em função do texto e contexto. Por isso o Dr. Paulo Ladeira, em artigo recente (outubro de 2.0020), ressalta, com pertinência, que “Na linguagem forense, “cônjuge virago” é uma expressão usada para designar a mulher do casal, em oposição a cônjuge varão. Note-se que é uma questão que se refere exclusivamente à prática jurídica já que o sentido trazido pelos dicionários (Houaiss, Aurélio, etc.) é outro totalmente diferente, ou seja, o de “mulher com hábitos masculinos”[5]A incorporação, ao léxico, de expressões e sentidos de verbetes desvirtuados pela sociedade, não é fenômeno novo, nem de todo indesejado, na medida em que a língua é um dos importantes elementos culturais de um povo e tem como finalidade basilar facilitar a comunicação.Sou contra, porém, essa flexibilidade generalizada defendida por aqueles que advogam a incorporação, à linguagem culta, de termos coloquiais, como gírias em voga, com data de validade para desaparecer,  e de incorporação, ao léxico, de significados deturpados de sua significação tradicional. É uma discussão interminável, na qual cada lado dispõe de argumentos igualmente válidos e ponderáveis. À minha cara parte contrária, que inspirou esse texto, quero dizer que melhor teria sido deixar os termos mulher e divorcianda, insuscetíveis de outras conotações, do que insistir para substituí-las por cônjuge virago, palavra de sentido dúbio e que, convenhamos, para usar uma expressão coloquial e chula,  é feia pra caralho.

Até mais amigos.

P.S.  A imagem da coluna de hoje foi emprestada de https://vqadvogado.jusbrasil.com.br/artigos/588149243/divorcio-tipos-e-principais-duvidas

 

 

 

 



[1] P. 3756, 4ª. Edição, 1.985, Editora Delta.

[2] Idem, ibidem, p. 3.812.

[3] Camilo Castelo Branco, MARIA DA FONTE, I, P. 21, ed. 1.885.

[4] São Paulo, Companhia Melhoramentos, 5ª. Edição, 2.002.

[5] V. pauloladeira@advocacialadeira.com.  Acesso em 30 de junho de 2.022.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

SOBRE DRONES E POMBOS-CORREIO - A AMEAÇA VEM DO CÉU?

 

Boa noite amigos,



Pombo correio/voa depressa/E esta carta leva para o meu amor/Leva no bico/Que eu aqui fico esperando/Pela resposta que é pra saber se ela ainda gosta de mim/. Esses os primeiros versos da canção romântica que Moraes Moreira cantava no final dos anos 70.  Pombos-correio ou pombos-correios, dois plurais considerados igualmente corretos pelos melhores dicionários de língua portuguesa,  são espécies de aves capazes de levar mensagens de um ponto para onde são transportadas para o caminho de volta. Eles sempre voltam para casa. E por via aérea. Os pombos-correios, já se prestavam a essa finalidade cerca de 3.000 anos A.C., no Antigo Egito e reis e rainhas, amigos e inimigos e, especialmente, amantes se serviram deles como transportadores eficientes, leais e especialmente baratos. Aliás, gratuitos, pois nunca se soube que qualquer deles tenha cobrado para executar o serviço. Ao menos em pecúnia. 


Passaram os tempos e o avanço da tecnologia aposentou esse grande protagonista das interlocuções impossíveis ou improváveis, românticas ou não. E agora surgiram os drones, maquinas estranhas que, de forma controlada e com a eficiência de um míssil, cumprem a função de transportar mensagens e objetos no interesse do seu senhor ou dono entre dois pontos: a origem e o destino. Sem dúvida o drone é o sucessor do pombo-correio. Sem beleza, sem naturalidade, sem romantismo e por cima de caráter duvidoso. Não conta com a lealdade e a confiança de seu ancestral. E ainda serve para realizar tarefas ilícitas e escusas, como levar celulares para dentro dos presídios. Acabo de ler numa plataforma digital que, em Uberlândia, enquanto simpatizantes e correligionários de candidatos do PT e do PSD aguardavam um encontro político entre o ex-Presidente Lula e o Prefeito de Belo Horizonte,  um drone sobrevoou o espaço, lançando sobre ele e os presentes fezes e urina. Muita correria e indignação geral foi o resultado dessa merda que caiu do céu e que nada teve a ver com a ira divina ou, até onde se sabe, com o antagonista político ora instalado no Planalto.   Sugiro que façamos um movimento pela volta do pombo-correio. Nem que seja só para cantar como o fazia o saudoso Moraes Moreira: Pombo correio/ se acaso um desencontro acontecer/ não perca nem um só segundo/ Voar o mundo se preciso for/ O mundo voa mas me traga uma notícia boa.  

Até mais amigos.

 

P.S. - A imagem de hoje é de um drone do tipo utilizado em Uberlândia.


domingo, 5 de junho de 2022

CINEMA E LITERATURA - VOLTAR A VIVER - UM CONTO DE LEV TOLSTOI

 

Boa noite amigos,


"NÃO HÁ GRANDEZA ONDE NÃO HOUVER SIMPLICIDADE"  (Lev Tolstoi).


Levado à telona no ano de 1.937, o longa Voltar a Viver, título homônimo do conto de Lev (Leon, Leão, Leo ou Liev) Tolstoi, reputado, ao lado do compatriota, Fiodor Dostoievski, um dos dois maiores escritores russos de todos os tempos, pode ser considerado uma quase autobiografia do autor, tamanha as coincidências entre a sua própria origem, experiências e mutações de pensamento e de condutas, com as do protagonista, Dimitri, jovem de origem nobre que,  submetido aos caprichos da família e dos valores da sociedade soviética do século XIX, começa a refletir sobre o sentido da vida e os fins do Estado e das instituições[1]. No roteiro, os atores, Fredric March e Anna Sten, nos papéis respectivos dos protagonistas, o nobre Dimitri e da campesina, Katusha se reencontram no início da idade adulta para viver a emoção de uma grande paixão. O amor e o casamento entre os jovens se revelam inadequados, senão  impossíveis, para os padrões da sociedade e da monarquia czarista vigente[2].  Dimitri se sente oprimido por ter que reproduzir os papéis sociais que lhe são destinados, especialmente a vedação à prerrogativa de auto-determinar-se ou à proibição de amar a mulher por quem se encantou por ser ela de outra classe social.   Acusada, posterior e injustamente, da prática de um delito, Katusha é condenada.  A prisão e a condenação equivocada da mulher amada,  que ele não consegue reverter, apesar das tentativas desesperadas, leva Dimitri ao sacrifício de renunciar a todos os seus bens materiais[3] e aos valores da sua casta social e, assim,  apresentar-se à amada, despido de qualquer bem ou valor da nobreza, para se comprometer a com ela experimentar uma vida nova futura, baseada na simplicidade, na liberdade, na igualdade entre os homens, no amor e no respeito a Deus e aos valores espirituais.  O escritor dos afamados Guerra e Paz (1877) e Anna Karenina (1869), no conto, Voltar a Viver, já revela a saga de vida  que vai convertê-lo, mais tarde, em  implacável pacifista, condenando todos os meios de opressão individual ou estatais, sobretudo as guerras (na da Criméia, serviu como 2º Tenente do Exército Russo). Seus argumentos, elaborados  com sensível engenho e fervorosa crença de que correspondiam efetivamente a uma vida baseada na ética, na paz social e na justiça,  foram fonte de inspiração para a construção da doutrina de Mahatma Gandhy, na Índia. Agora, distante do tempo em que escreveu o conto que deu origem ao filme, Tolstoi, nos últimos anos de sua vida, abandonou a vida social e familiar, dedicando-se a escrever compulsivamente, pregando, de forma cada vez mais radical, os valores nos quais acreditava[4], quais sejam, a vida simples, desprovida de bens materiais, o vegetarianismo, o cristianismo ascético, voltado para a castidade e a abstinência sexual, condenando a existência e intervenção de qualquer Estado, a cobrança de impostos, a propriedade privada e a apropriação da terra pelo Estado e pelos poderosos. Decidiu, por fim, recolher-se a um mosteiro, acompanhado por uma filha e um criado. No caminho dessa viagem, porém, caiu doente e faleceu de pneumonia no dia 20 de novembro de 1.910, na cidade de Astopovo, ainda em solo russo. Para o ano em que o filme foi rodado (1.937), em branco e preto, nos seus 81 minutos de duração, a qualidade das imagens e da  sonoplastia são bastante razoáveis e o DVD (acredito que é a única fonte disponível no momento) oferece versões em espanhol e em inglês e legenda em português. O meu DVD consta de uma coleção (edição especial limitada) batizada de “Os Mestres da Literatura”  com outros dois filmes: A Dama das Camélias (do romance de Alexandre Dumas) e Os Assassinos, do ótimo Ernest Hemingway, todos à disposição dos amigos.

Forte abraço.



[1] Aqui uma das famosas frases do autor, referindo-se à opressão do Estado sobre o súdito, maior quanto mais se encontrar este na escala da importância institucional: “É o destino imutável de todos os atores ativos que, quanto mais altamente colocados estiverem na hierarquia humana, menos livre serão.”

[2] A monarquia absolutista Czarista (tzar, em russo, imperador) durou de 1.547 a 1.917, quando ocorreu a Revolução Russa e era fundamentada no poder absoluto do Imperador, que se confundia com o próprio Estado e nos ensinamentos da Igreja Ortodoxa.

[3] Aos 82 anos Tolstoi também renunciou a todos os seus bens materiais, incluindo os seus direitos autorais sobre as obras até então escritas e publicadas.

[4] O anarquismo que defendia chega, enfim, no campo da religião. Tolstoi resolveu reescrever a Bíblia à sua maneira e aderiu ao Georgismo, filosofia econômica de Henry George, adesão que deixa mais explícita no seu último romance, Ressurreição, de 1.899.