Boa tarde amigos,
O advogado Ricardo Ortiz,
querido confrade, me envia e.mail para comentar decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça que concedeu Habeas Corpus a uma garota de programa
acusada de roubo, por ter tomado, à força, um cordão folheado a ouro, de um
cliente que se recusou a pagar pelo sexo entre ambos, previamente acordado pelo
valor de R$15,00. A Turma Julgadora, com base no voto do Ministro Relator Rogério
Schietti Cruz, desclassificou o delito, de roubo para exercício arbitrário
das próprias razões, e, em consequência, por ser este último sancionado com
pena muito menor, reconheceu a prescrição da pretensão punitiva do Estado, e,
em consequência, concedeu a ordem para liberar a paciente. [1]Meu interlocutor, na base
da gozação, mandou o seguinte aviso, ipsis litteris: “MESTRE JAMIL. Favor avisar a turma dos
“pula cerca”. Tomem cuidado, agora elas podem “cobrar em juízo o pagamento por
esse tipo de serviço”.
Brincadeiras à parte, a decisão deve ser comemorada. Nenhum profissional com
conhecimentos primários de Direito
Penal, pode ver na conduta dessa jovem, a prática de crime de roubo. Para
começo de assunto esse delito contra o patrimônio pressupõe dolo específico
consubstanciado no chamado “animus
furandi” (intenção de subtrair a coisa para si), qualificado pelo uso de
violência ou grave ameaça[2]. É evidente que entre as
partes existiu um contrato com todas as suas características básicas (partes,
objeto, consentimento). Mas, meus caros amigos, o objeto do tal pacto seria
lícito, uma das exigências que a lei, a doutrina e a jurisprudência consideram
indispensáveis à validade das declarações de vontade? Para responder a essa questão
é importante indagar: A que tipo de moralidade estaríamos nos referindo? O jus-filósofo,
Miguel Reale, ao aludir ao mundo da
cultura, assim se expressa: “Não vivemos
no mundo de maneira indiferente, sem rumos ou sem fins. Ao contrário, a vida
humana é sempre uma procura de valores. Viver é indiscutivelmente optar
diariamente, permanentemente, entre dois ou mais valores. A existência é uma
constante tomada de posição segundo valores. Se suprimirmos a ideia de valor,
perderemos a substância da própria
existência humana. Viver é, por conseguinte, uma realização de fins. O mais
humilde dos homens tem objetivos a atingir, e os realiza, muitas vezes, sem ter
plena consciência de que há algo condicionando os seus atos.” [3] Pois bem, se assim é, não
se pode ignorar que todas as qualificações e consequências jurídicas em que se
fundamentam as normas de igual cunho devem ser examinadas e aferidas de acordo
com os valores em conflito, para se saber qual deles há de prevalecer. Vamos
então indagar: será possível admitir, no estágio da civilização atual, que
qualquer indivíduo possa contratar com profissionais do sexo e, obtida a
anuência e a satisfação de seu objetivo, se furtar ao pagamento do
convencionado, sob alegação de imoralidade na prática da prostituição? A
eventual censura que se possa fazer a esse tipo de prestação de serviços
poderia excluir a credora de proteção jurídica conferida a todos pelo princípio
da igualdade e, especialmente, pelo da dignidade da pessoa humana? Alerte-se
que este último é indiscutivelmente um meta princípio, inserido na nossa Carta
Constitucional, como um dos objetivos do Estado democrático de direito. A
sociedade fez a sua escolha ao excluir, seletivamente, a prostituição, do
elenco dos delitos que pretende punir, preferindo adjetivá-la como mazela
social. O Estado, por seu turno, participa dos proventos oriundos dessa prestação
de serviços, que são normalmente tributados, e, ainda, como assevera parte do Acórdão em exame, induz
a sua legalidade como atividade econômica regular. Observe-se o seguinte trecho
da decisão: “.... O Código Brasileiro de Ocupações de
2002, do Ministério do Trabalho, menciona a categoria dos profissionais do
sexo, o que “evidencia o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de que a
atividade relacionada ao comércio sexual do próprio corpo não é ilícita e,
portanto, é passível de proteção jurídica”. Além disso, lembrou o Relator, que a
Corte de Justiça da União Europeia, considera a prostituição voluntária uma
atividade econômica lícita. Por tais razões, ainda que fosse possível
recusar, em função de uma Moral puramente Formal, licitude à prática da
prostituição voluntária, roubo não haveria, porquanto a jovem estaria induzida
a erro escusável no tocante à proteção jurídica que merecia a sua atividade,
como qualquer outra econômica reconhecida pelo Estado. Por outro lado, enquanto o atual direito
positivo reconhece função social ao contrato, ressaltando os seus princípios
fundamentais modernos, dentre os quais, os da lealdade e da boa fé objetiva, a exclusão do mencionado
pacto, de toda e qualquer proteção legal, importaria numa espécie de “salvo conduto” aos
exploradores do corpo e da boa fé alheia, amparados num suposto preceito moral, que não só eles
próprios desrespeitam, como figuram como partícipes necessários à sua violação?.
Seria possível reconhecer diferença de efeitos entre duas condutas
absolutamente iguais, sem contradição?
Há muitos anos, o saudoso Magistrado Quartim Barbosa, em antológica sentença conhecida nos meios
forenses e transcrita neste blog na postagem de 29 de maio de 2.013, denominada Casa de Prostituição,
advertia para o óbvio: “A fornicatio
simplex continua livre, desde que não ofenda o vínculo conjugal, a
menoridade, a liberdade sexual e o pudor público”. Falou e disse! Por fim
é indispensável que se saliente, com respeito a todos os pensamentos e
ideologias políticas ou religiosas, que o Estado laico, não está autorizado a
qualquer espécie de discriminação de tratamento em relação aos seus súditos,
fundado em valores, quaisquer que sejam, que constituam óbice à construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” (art.
3º, I, da CF) ou não se prestem a “promover
o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, da CF de 88), reputados pelo Constituinte, como objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil. Portanto, meu caro Ricardo vamos advertir o
pessoal que gosta de “pular a cerca”, ou que ainda não tem “cerca para pular”
que transar e não pagar o que eventualmente for combinado, dá galho e é
possível que, além de sofrer ação judicial de cobrança, pode sei lá, quem sabe,
num futuro, responder por crime de estelionato ou coisa que o valha. Como dizia
a velha sabedoria do caboclo: “O que combinado, não é caro”.
Até amanhã amigos.
P.S. (1) A imagem de hoje é da peça “A
Prostituta Respeitosa”, baseada na famosa obra homônima do francês, Jean Paul Sartre, expoente do Existencialismo
e foi emprestada do site of.org.br/sem-categoria/a
prostituta-respeitosa-em-curta-temporada-na-arena-Dicró; A peça esteve em
cartaz na Arena Dicró, bairro da Penha, em São Paulo, nos dias 14, 15, 16 e 17
de abril de 2.016
P.S. (2) - A
Prostituta Respeitosa conta um caso de segregação racial nos Estados Unidos na década de 40. Lizzie é uma prostituta branca, que deixa Nova York para tentar vida nova numa cidade do sul. Na viagem de
trem, testemunha o assassinato de um negro cometido por um branco, sobrinho do
ilustre senador Clark. A partir daí,
a família deste vai fazer de tudo para comprar seu falso testemunho. Com esta
peça, poucas vezes montada no Brasil, Sartre expõe a dinâmica dos excluídos.
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[1] Conferir HC 211.888 (STJ).
[2]
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas
Gerais, em caso idêntico, ao julgar a
apelação criminal APR 10040150043079001 (Acórdão publicado em 15 de fevereiro
de 2.016), decidiu pela inexistência de animus
furandi na conduta de profissional do sexo que, após programa sexual, subtraiu
telefone celular da vítima para compeli-la ao pagamento da quantia
convencionada.
[3] LIÇÕES PRELIMINARES DE DIREITO, 1.996, 23ª. edição, São Paulo: Saraiva, p. 26.