quarta-feira, 2 de novembro de 2016

LITERATURA - MEU REINO POR UM CAVALO - AUTORIAS E CLICHÊS

Boa tarde amigos,

     Capa de apresentação do livro
      "Meu Reino por Um Cavalo" da
       Editora L& PM.
Outro dia, fuçando pelas prateleiras da Livraria Cultura, buscando alguma novidade que me interessasse, fora dos grandes clássicos permanentemente reeditados, e das mesmices dos livros de auto-ajuda, tive minha atenção despertada para um título destacado, na capa,  em letras garrafais: MEU REINO POR UM CAVALO.  Trata-se de conhecida frase pronunciada por personagem de William Shakespeare, o rei Ricardo III da Inglaterra, na peça teatral do mesmo nome, ao perder seu cavalo, em plena luta, na batalha de Bosworth,  na qual foi derrotado pelo seu desafeto, o conde de Richamond.  Gosto de reproduzir a citação, lembrada por escritores civilistas, em minhas aulas de Direito, para ilustrar a figura do “estado de perigo”, um dos vícios de consentimento que o novo Código Civil[1] criou, ao lado do “erro”, “dolo” e “coação”. Consistiria o tal “estado de perigo” numa promessa que se faz em momento em que o agente se encontra em situação de risco grave, de ordem pessoal ou patrimonial. Aí essa manifestação de vontade passa a ter valor relativo, pois não agiria ele em condições  normais de deliberar quanto aos elementos e conteúdos da proposta. Perfeito, então, o exemplo. Vale notar que no caso da famosa peça, a proposta foi inútil, pois o monarca perdeu o cavalo, não conseguiu outro, e perdeu também o reino. Bem, voltando ao livro que me chamou a atenção, procurei conhecer o seu autor. Mas, claro, logo descobri que, qualificando-se como um livro de citações, aforismas  e frases célebres, uma mera coletânea do que se disse por aí, no presente e nos passados próximo e remoto, o autor não é o editor, mas os filósofos, dramaturgos e escritores,  ou, ainda melhor, os seus personagens, pois, no caso de William Shakespeare, por exemplo, é quase impossível separar a criatura do criador, e suponho que muitas de suas citações e aforismas sejam mais conhecidos pelos personagens, em cujas bocas foram pronunciados,  do que propriamente pela autoria das peças. Não duvide que muita gente que sabe quem foi Romeu e Julieta, nunca ouviu falar do dramaturgo. Minha avó vivia nos alertando que "Nem tudo que reluz é ouro", mas decerto nunca soube quem foi o Mercador de Veneza. E o não menos famoso "O que não tem remédio remediado está" andou pela boca de muita gente simples que de Otelo, no máximo teve notícias do pequeno Grande Otelo, o nosso lendário Macunaíma, herói brasileiro de saudosa memória.  Pensei com meus botões: Como as frases que se tornam conhecidas e notáveis, por gerações e gerações, se juntam mais aos personagens do que aos seus criadores. E em muitos casos, curiosamente, se desprendem de um e outro, do contexto da obra, da própria obra, para ganhar feição e vida próprias. Aí viram clichês, que se prestam para tudo e para todos, ganhando autonomia e até supostos outros autores ou coautores. [2]

Cena do filme  O Carteiro e o Poeta, uma produção ítalo-fran-
cesa de 1.996, vencedor do Oscar de Melhor Trilha Sonora,
focalizando os atores, Philippe Noiret (Neruda) e Massimo
Troisi (O Carteiro). Imagem emprestada de www.outrospla-
nos.com.br).
Em O Carteiro e o Poeta,  filme do diretor Michael Radford, que retrata o relacionamento do poeta Pablo Neruda, exiliado e isolado em uma ilha remota do Mediterrâneo,   com um carteiro, que lhe leva a correspondência, há uma cena marcante. Depois de descobrir que o carteiro teria presenteado uma namorada com  versos de sua autoria, segue-se o seguinte diálogo entre êles - Eu te dei meus livros para ler, mas não te autorizei a roubar os meus poemas. Deste a Beatrice o poema que escrevi para Matilde.  Ao que o humilde e sensível carteiro, responde: - A poesia não  pertence a quem a escreve mas àqueles que precisam dela.”[3]. Pois bem, voltando à livraria, indago dos amigos: Quem compraria um livro que se limita a reproduzir frases, pensamentos ou aforismas de  notoriedade, que se acham, aos punhados, na Internet? Pois bem, eu comprei. Paguei cerca de vinte e poucos reais um livro de apresentação, diagramação e ilustração muito modestas,  por uma razão muito simples: prefiro sempre as versões físicas das coisas, do que as virtuais. E há também  um critério de organização que facilita a localização pelo índice e a reunião dos assuntos, em cada capítulo, o último dos quais reservado para, em poucas linhas, destacar quem foi cada um dos autores das citações colacionadas. Ah! Fiquei sabendo que o livro é um sucesso de venda, coisa rara nos dias que correm. Acho que também por um último detalhe que me passou. Há espaços  nele para que o leitor escreva os pensamentos que quiser (aqueles que nunca esqueceu ou que foram importantes para ele, segundo adverte o organizador Ivan Pinheiro Machado, na apresentação).  Bela sacada de marketing! 
Caricatura de Millor Fernandes 
(1923/2012), desenhista, humo-
rista, dramaturgo, escritor, poe
ta, tradutor e jornalista.

Vivemos num mundo em que as pessoas querem interagir, não apenas olhar, ver, curtir, na linguagem internauta. Dar um pitaco  aqui e acolá. Arrumar com um jeitão próprio. Um meter um pouco a colher no brigadeiro do outro. Ou como diria meu neto Rafael para justificar porque rabiscou o desenho, ou mudou as cores com que ele foi pintado pelo avô: Vô, só que eu num gostei, tá?  Tá.

Boa semana amigos.

P.S. (1) O organizador dedica o livro ao saudoso Millôr Fernandes. Dele destaca uma frase, que de certa forma poderia resumir  a intenção desta postagem, depois de reflexões sobre  pensamentos, autorias, ignorâncias, vôos, cultura e clichês: “SHEIKESPIR, SIM, É QUE ERA BÃO: SÓ ESCRIVIA CITAÇÃO!”




[1] A gente continua chamando de “novo” para diferenciar do “velho”, o de 1.916, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1.917, antes da Primeira Guerra Mundial, e que se manteve vivo, na quase totalidade,  até 11 de janeiro de 2.003, quando foi revogado e substituído pelo atual. Mas o vigente já é mocinho, está com 13 anos e, como adolescente, vive as contradições de sua idade, num mundo em que tudo se renova rapidamente. O Direito de Família, por exemplo, como está disciplinado no atual Código Civil, tirante algumas regras de caráter patrimonial, praticamente nada tem a ver com o formato da família atual ou com a jurisprudência que se vem construindo sobre o assunto.
[2] Cheguei a pensar que o tal “Nem tudo que reluz é ouro” era de minha vó. E pensei: Eta veinha porreta, sabichona! E é comum ainda ouvir muita gente, ao fazer citações, começar por: - Como dizia minha avó. Como dizia Jô Soares.. Como dizia fulano, ciclano, E por aí afora. Essa gente toda só reproduziu, mas ganhou, de graça, a fama de criador, de autor ou de coautor É, por assim dizer, a função democrática da literatura.
[3] Aqui podemos dizer que se trata da função social mesmo da literatura, que socorre aqueles carentes de talento para traduzir, em palavras, os seus sentimentos, as suas visões do mundo e da vida. Beleza!

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