Boa tarde amigos,
Capa de apresentação do livro
"Meu Reino por Um Cavalo" da
Editora L& PM.
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Outro dia, fuçando
pelas prateleiras da Livraria Cultura,
buscando alguma novidade que me interessasse, fora dos grandes clássicos permanentemente
reeditados, e das mesmices dos livros de auto-ajuda, tive minha atenção
despertada para um título destacado, na capa, em letras garrafais: MEU REINO POR UM CAVALO.
Trata-se de conhecida frase pronunciada por personagem de William
Shakespeare, o rei Ricardo III da
Inglaterra, na peça teatral do mesmo nome, ao perder seu cavalo, em plena luta, na batalha
de Bosworth, na qual foi derrotado pelo seu desafeto, o conde de Richamond. Gosto de reproduzir a citação, lembrada por escritores
civilistas, em minhas aulas de Direito, para ilustrar a figura do “estado
de perigo”, um dos vícios de consentimento que o novo Código Civil[1]
criou, ao lado do “erro”, “dolo” e “coação”. Consistiria o tal “estado de perigo” numa promessa que se
faz em momento em que o agente se encontra em situação de risco grave, de ordem
pessoal ou patrimonial. Aí essa manifestação de vontade passa a ter valor
relativo, pois não agiria ele em condições
normais de deliberar quanto aos elementos e conteúdos da proposta.
Perfeito, então, o exemplo. Vale notar que no caso da famosa peça, a proposta
foi inútil, pois o monarca perdeu o cavalo, não conseguiu outro, e perdeu
também o reino. Bem, voltando ao livro que me chamou a atenção, procurei
conhecer o seu autor. Mas, claro, logo descobri que, qualificando-se como um
livro de citações, aforismas e frases
célebres, uma mera coletânea do que se disse por aí, no presente e nos passados próximo e remoto, o autor não é o editor, mas os filósofos, dramaturgos e
escritores, ou, ainda melhor, os seus
personagens, pois, no caso de William
Shakespeare, por exemplo, é quase impossível separar a criatura do criador,
e suponho que muitas de suas citações e aforismas sejam mais conhecidos pelos
personagens, em cujas bocas foram pronunciados, do que propriamente pela autoria das peças.
Não duvide que muita gente que sabe quem foi Romeu e Julieta, nunca
ouviu falar do dramaturgo. Minha avó vivia nos alertando que "Nem tudo que reluz é ouro", mas decerto nunca soube quem foi o Mercador de Veneza. E o não menos famoso "O que não tem remédio remediado está" andou pela boca de muita gente simples que de Otelo, no máximo teve notícias do pequeno Grande Otelo, o nosso lendário Macunaíma, herói brasileiro de saudosa memória. Pensei com meus botões: Como as frases que se tornam conhecidas e notáveis, por gerações e gerações, se juntam mais aos personagens do que aos seus criadores. E em muitos casos, curiosamente, se desprendem de um e outro, do contexto da obra, da própria obra, para ganhar feição e vida próprias. Aí viram clichês, que se prestam para tudo e para todos, ganhando autonomia e até supostos outros autores ou coautores. [2].
Em O Carteiro e o Poeta, filme do diretor Michael Radford, que retrata o relacionamento do poeta Pablo Neruda, exiliado e isolado em uma
ilha remota do Mediterrâneo, com um carteiro, que lhe leva a correspondência, há uma cena
marcante. Depois de descobrir que o carteiro teria presenteado uma namorada com versos de sua autoria, segue-se o seguinte diálogo entre êles - Eu te
dei meus livros para ler, mas não te autorizei a roubar os meus poemas. Deste a
Beatrice o poema que escrevi para Matilde. Ao que o humilde e sensível carteiro, responde:
- A
poesia não pertence a quem a escreve mas
àqueles que precisam dela.”[3].
Pois bem, voltando à livraria, indago dos amigos: Quem compraria um livro
que se limita a reproduzir frases, pensamentos ou aforismas de notoriedade, que se acham, aos punhados, na
Internet? Pois bem, eu comprei. Paguei cerca de vinte e poucos reais um livro
de apresentação, diagramação e ilustração muito
modestas, por uma razão muito simples: prefiro sempre as versões físicas das coisas,
do que as virtuais. E há também um
critério de organização que facilita a localização pelo índice e a reunião dos
assuntos, em cada capítulo, o último dos quais reservado para, em poucas linhas,
destacar quem foi cada um dos autores das citações colacionadas. Ah! Fiquei sabendo
que o livro é um sucesso de venda, coisa rara nos dias que correm. Acho que
também por um último detalhe que me passou. Há espaços nele para que o leitor escreva os pensamentos que quiser (aqueles que nunca esqueceu ou que foram importantes para ele,
segundo adverte o organizador Ivan Pinheiro Machado, na apresentação). Bela sacada de marketing!
Caricatura de Millor Fernandes
(1923/2012), desenhista, humo-
rista, dramaturgo, escritor, poe
ta, tradutor e jornalista.
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Vivemos num mundo em que as pessoas querem interagir, não apenas olhar, ver, curtir, na linguagem internauta. Dar um pitaco aqui e acolá. Arrumar com um jeitão próprio.
Um meter um pouco a colher no brigadeiro do outro. Ou como diria meu neto
Rafael para justificar porque rabiscou o desenho, ou mudou as cores com
que ele foi pintado pelo avô: Vô, só que eu num gostei, tá? Tá.
Boa semana amigos.
P.S. (1) O organizador
dedica o livro ao saudoso Millôr Fernandes. Dele destaca uma frase, que de certa forma poderia
resumir a intenção desta postagem, depois de reflexões sobre pensamentos, autorias, ignorâncias, vôos, cultura e clichês: “SHEIKESPIR, SIM, É
QUE ERA BÃO: SÓ ESCRIVIA CITAÇÃO!”
[1]
A gente continua chamando de “novo” para
diferenciar do “velho”, o de 1.916, que entrou em vigor em 1º de janeiro de
1.917, antes da Primeira Guerra Mundial, e que se manteve vivo, na quase
totalidade, até 11 de janeiro de 2.003,
quando foi revogado e substituído pelo atual. Mas o vigente já é mocinho, está
com 13 anos e, como adolescente, vive as contradições de sua idade, num mundo
em que tudo se renova rapidamente. O Direito de Família, por exemplo, como está
disciplinado no atual Código Civil, tirante algumas regras de caráter patrimonial,
praticamente nada tem a ver com o formato da família atual ou com a jurisprudência
que se vem construindo sobre o assunto.
[2] Cheguei a pensar que o tal “Nem tudo que reluz
é ouro” era de minha vó. E pensei: Eta veinha porreta, sabichona! E é comum
ainda ouvir muita gente, ao fazer citações, começar por: - Como dizia minha
avó. Como dizia Jô Soares.. Como dizia fulano, ciclano, E por aí afora.
Essa gente toda só reproduziu, mas ganhou, de graça, a fama de criador,
de autor ou de coautor É, por assim dizer, a função
democrática da literatura.
[3] Aqui podemos dizer que se trata da função
social mesmo da literatura, que socorre aqueles carentes de talento para
traduzir, em palavras, os seus sentimentos, as suas visões do mundo e da vida.
Beleza!
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