terça-feira, 27 de dezembro de 2016

CONTO - O VELHO E O MENINO

Boa noite amigos,

Cena do belo filme francês O Velho e a Criança, de Claude
Bernier, focalizando a amizade entre um velho e um menino,

durante a Segunda Guerra Mundial. Imagem emprestada

de diarioliberdade.
Escrevi este conto, baseado em história real, vivenciada ainda recentemente, aqui em Orlando, nos Estados Unidos, onde me encontro com alguns familiares, passando férias, mas as impressões e interpretações, evidentemente, são   exclusivamente minhas.


"O olhar do velho era de encanto e ternura. O do menino, de apenas quatro anos, de interrogação e impaciência. Foi a segunda vez que repreendia o velho, lembrando-o da promessa que ele tinha feito na véspera. O velho, no entanto, não se lembrava. Não tinha mais vésperas, não tinha passado. A memória, brilhante em outros tempos, o abandonava gradativamente. Tudo era novo, de novo, a cada novo dia,  a cada hora, quiçá a cada minuto. Seu semblante, no entanto, denotava uma tranquilidade profunda. Não havia mais projetos a realizar, e o futuro, como um todo, se traduzia num imenso vazio. A inconsciência do passado, ao menos não o atormentava mais. Erros, omissões, pecados, culpa, se perdiam no buraco negro e profundo do universo. Um universo que conspirava agora contra a sua própria identidade, do que ele nem sequer suspeitava, porque tudo era novo e surpreendente, positiva ou negativamente. O menino, porém, não se importava. Rápido no raciocínio, privilegiado pela memória, reproduzindo termos de  repreensões que ele próprio ouvira, várias vezes, dos pais ou avos, sem saber exatamente o sentido deles, insistia na firme cobrança da promessa, ignorando  que era ele a única promessa entre os dois. A promessa de um adulto de futuro brilhante, se a sorte, essa condição danada e incontrolável da existência humana, lhe sorrisse. Faltava-lhe, na aurora da vida, a compreensão do tempo e sua curva, da própria vida humana como ela se apresentava na história da humanidade.  O avô do menino olhava tudo a curta distância, mas  sem interferir  no diálogo. O velho, mais velho do que o avô do menino, tinha sido - e ainda era, embora não o soubesse - um grande amigo do avô do menino. Querido amigo. O avô então se aproximou, tomou a criança em seus braços e explicou, ternamente, que o velho  não se lembra de coisas, de pessoas, muito menos de promessas feitas. Às vezes podia acontecer de não saber nem quem era ele mesmo, ou algum amigo, ou familiar querido. O menino mostrou surpresa e interesse na explicação do avô. E esperto, como era, logo  entendeu a mensagem.  O avô completou, afirmando que o menino deveria ajudá-lo, porque ele era mais jovem, mais forte e tinha uma memória muito boa. Ele explicou que as pessoas, quando já envelhecidas e atingidas por doenças, precisam ser entendidas, respeitadas e ajudadas. O garoto acreditou nas verdades que o avô disse. O avô não dizia mentiras. O avô queria, mas não podia explicar a seu neto que ele próprio pouco sabia da vida. E que repetia, nos seus discursos de formatura, aos alunos da academia, a célebre frase do escritor Jorge Luis Borges:  “não sabemos se nascemos para o conhecimento ou para o esquecimento”.  E que a vida e a morte eram enigmas que nunca foram explicados de forma a permitir apreensão pela razão humana. A cara do menino logo mudou de semblante. Em lugar de impaciência e arrogância surgiu um rosto plácido e um sorriso amistoso. E ele não cobrou mais o cumprimento da promessa. Então chegou a meia-noite e as sirenes anunciaram a chegada do ano novo.Todos se confraternizaram. E o velho e o menino, os dois extremos da vida, também brindaram um com o outro. O velho com uma taça de champanhe que lhe deram, com a ordem de ingerir apenas um gole. O menino, com um copo de leite que ele tinha escolhido, investido no seu  pleno exercício do livre e precoce arbítrio. E o amor fraterno reinou naquela sala, naquela noite, entre velhos e moços, homens e mulheres, crianças e adultos, afastando, por momentos, as diferenças, a incompreensão, o desencontro e a sensação de solidão que cada ser humano experimenta e carrega, por vezes, neste mundo."

P. S. (1) Que num futuro qualquer,  a humanidade caminhe para o respeito, a confraternização e a solidariedade de que é tão reconhecidamente carente, entre povos e pessoas,  nessas eras da chamada civilização.

P.S.  (2)    Essa é boa: "A criança diz o que faz, o velho diz o que fez e o idiota o que vai fazer."
(Barão de Itararé).

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