sexta-feira, 20 de março de 2020

CONTO - RODRIGO E AS MEIAS DO ADVOGADO


Boa noite amigos,

Homem exibindo meia, meio constrangido. Imagem empres-
tada de www.fotossearch.com.
Sem papo sobre o Corona Vírus, que está na ordem do dia,  em todos os jornais, revistas, mídias em geral,  pandemia responsável pela minha reclusão dentro das quatro paredes do meu apartamento, de onde sou lembrado, a cada cinco minutos, que sou idoso e estou na faixa de risco. Por isso, mando hoje aos amigos um "causo" que é novo e não está em nenhum dos meus livros anteriores de "Causas e Causos". Relembrei o episódio e alguns detalhes dele com meu amigo Rodrigo Herrera.  E o grande personagem foi ele mesmo  há uns 35 anos.

Vai lá:

"Rodrigo Badan Herrera é o nome da fera, hoje um dos mais competentes e renomados advogados trabalhistas do Estado de São Paulo, mas que chegou a abandonar a profissão, por alguns dias, por causa do incidente de que foi protagonista ainda recém-formado.  Ansioso,  responsável, leal e atrapalhado são adjetivos supostamente contraditórios que, todavia,  cabiam  bem e harmoniosamente no ainda jovem advogado formado pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, no ano de 1984. Convidado por mim para iniciar a carreira no escritório de advocacia que dividíamos eu, minha mulher e os meus sócios, Ignácio e Toninho Carilo, ainda ostentava ele a condição de advogado com inscrição provisória na OAB. É que, ao invés da tradicional carteirinha de advogado, a inscrição provisória era registrada num documento do tamanho de uma folha sulfite, em papel tipo cartolina, pelo qual a  OAB autorizava o portador ao exercício da advocacia. Reconheço hoje que eu era um chefe durão, embora compreensivo e generoso com meus alunos e subordinados. A intenção era conscientizá-los para os desafios da profissão e da responsabilidade que cada ato ou situação trazia como consequência. Mas vamos ao "causo" que é o que interessa. Meu escritório tinha assumido a carteira do tradicional bar e restaurante Giovanetti que, sob nova direção, tinha promovido uma renovação no quadro de funcionários, especialmente de garçons. A alegação para as dispensas, de um modo geral, era a de que estavam viciados em certos comportamentos considerados inadequados pelos novos dirigentes. Uma advogada, a Vanny Hipólito, hoje falecida, tinha proposto uma reclamação trabalhista e nós deveríamos defender a reclamada. Na primeira audiência que era apenas para tentativa de conciliação e não ocorrendo o acordo para apresentar contestação escrita resolvi incumbir o Rodrigo de realizá-la como advogado, acompanhado do preposto, o seu Correia, gerente e sócio da empresa. Seria a primeira audiência que o dr. Rodrigo faria e ele demonstrava certo receio e insegurança, perfeitamente normais ao noviciado. Expliquei a ele que a reclamada não queria fazer acordo, justamente para não incentivar a propositura de novas ações que viriam no rastro dessa primeira. Entreguei-lhe porém um cheque, de cerca de três mil cruzeiros, que se referia às chamadas verbas incontroversas que deveria ser entregue ao reclamante, sob pena de condenação no pagamento em dobro, como previa a lei trabalhista.  E lá vai o Rodrigo para sua estreia. A Junta de Conciliação, naquela época, estava instalada na São Carlos, uma rua estreita que começava na Avenida Amoreiras e terminava na Avenida Aquidabã, próxima do Hospital Mário Gatti. Chovia copiosamente e Rodrigo, conduzindo o Sr. Correia no seu veículo, deixou-o na porta do prédio da Junta e foi procurar um lugar para estacionar, o que era difícil e penoso, sobretudo pela chuva que caía naquele horário. Depois de rodar por algum tempo, o nosso protagonista encontrou um lugar e deixou o veículo bem próximo à uma imensa poça d'água. Sem conseguir evitar a enchente, meteu o pé na água que corria solta e com isso encharcou sapatos e meias. O terno também ficou igualmente ensopado. Correu assim para o prédio da Junta, preocupado com o horário da audiência e com o perigo de, em atrasando, provocar uma revelia grave que tornaria qualquer defesa inútil. Chegou cinco minutos antes do horário e foi direto ao banheiro. Tirou o paletó, torceu-o, e bem assim os sapatos. Como as meias estavam ensopadas, resolveu também tirá-las e colocou-as dentro de sua pasta. Depois de tentar se arrumar de alguma forma aceitável,  ingressou na sala de audiências, sem o paletó que ele resolveu trazê-los, sem vestir, dobrado sobre o braço direito. Aquele sujeito de certa forma patético provocou um incômodo na Juíza que presidia a audiência. Como era muito jovem, a magistrada duvidou de sua condição de advogado. Logo que entrou foi advertido de que o seu traje como descrito não era adequado ao ritual exigido no Fórum. Com efeito, trazer o paletó dobrado no braço? Fala sério? A Juíza então, depois da advertência indagou: Quem é o senhor? E ele: Sou advogado da reclamada, ao que a Magistrada emendou: - Advogado? Não parece, o senhor tem a carteira que comprove essa condição. E o Rodrigo, acanhado, surpreso, extenuado, atrapalhado, não se fez de rogado. Abriu a pasta rapidamente, meteu a mão dentro dela até encontrar o tal documento da OAB que o credenciava com inscrição provisória. Ah, mas ao puxar o documento, com ele veio junto, enroscado, um pé de sua meia ensopada. A cena foi surreal e inesquecível. Havia um documento exibido à Juíza, a uma pequena distância de seus olhos, ao qual vinha acoplado uma meia suja e molhada. Não houve tempo para qualquer explicação. A Juíza deitou falação encima do jovem advogado, horrorizada com tudo o que havia visto e o que tinha sido a ela exibido. Com essa confusão toda, Rodrigo apresentou contestação e esqueceu de entregar o cheque com o pagamento das  verbas incontroversas.Chegou ao escritório extenuado e diante da minha pergunta sobre todos os pontos da audiência, constatou que não tinha entregue o cheque. Então eu lhe disse, sem dó, nem piedade:  - Ah, esqueceu? Não tem problema. Procure a advogada do reclamante, explique a ela que  esqueceu de entregar o cheque e veja se ela o aceita agora. Se não aceitar, o senhor paga a diferença entre o valor e o dobro dele Ok? Rodrigo ficou arrasado. Procurou e implorou à Dra. Vanny que aceitasse o cheque. Ela aceitou, mas em compensação o obrigou durante muito tempo a contar pára todo mundo que aparecia, que ele tinha exibido uma meia suja e fedida, molhada, para a Juíza da Conciliação. Depois disso, Rodrigo desistiu da advocacia. Procurou pelo avô e lhe pediu de volta um emprego de vendedor que tinha na joalheria do progenitor, situada na rua 13 de Maio. Fui buscá-lo, porém, na minha indefectível Brasília branca. E depois de rodar pela cidade, de conversar muito com ele e de mostrar que não era razão para abandonar a carreira o convenci a voltar. E estava certo. Rodrigo deixou o escritório, fez carreira e é, como eu disse, um respeitabilíssimo advogado trabalhista. Indicado, inclusive, em lista da OAB para ingressar como Desembargador do Tribunal do Trabalho da 15ª. região, compondo o quinto constitucional dos advogados. A meia exibida junto com a comprovação de inscrição do advogado, porém, daquele dia, passou à antologia forense. Não, claro, sem justo motivo. 

Até mais amigos.


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