Amigos,
I) O escritor francês Michel
de Montaigne, discorrendo em sua obra “De como Filosofar é aprender a Morrer” considera que “meditar sobre a morte é meditar
sobre a liberdade”. A despeito dessa evocação à meditação sobre a
inevitabilidade da morte e sua função redentora e libertadora, em todos os
tempos o homem evita pensar que a sua vida chegará um dia ao final; que a vida
é um ciclo e que a história da humanidade é a história de gerações que se
sucedem. O escritor Luiz Fernando Veríssimo assinala que a morte dos outros,
para nós, é um fato. A nossa morte, no entanto, é algo absolutamente impensável. E aconselha:
o melhor é esquecer dela;
II) A sociedade moderna, ao contrário das
grandes civilizações da antiguidade, transformou a doença e a morte em
verdadeiros tabus. E enquanto o cidadão romano, durante o Império, tinha medo
de morrer sem deixar testamento, sendo, pois, a sucessão testamentária a regra
absoluta, no Brasil, hoje, a cada 10 sucessões, apenas 1 delas é testamentária;
III) Graças
ao extraordinário avanço da medicina e
de suas ciências auxiliares, os homens estão vivendo mais e melhor. Já no século XIX, com o aperfeiçoamento do
sanitarismo, as causas das doenças infecciosas e fatais foram descobertas e,
com isso, os doentes e as mortes foram confinadas ao ambiente hospitalar.
E a partir dos anos 50 do século passado, uma
verdadeira revolução se experimentou nessa área, com a criação das primeiras
unidades de terapia intensiva e o seu aparato tecnológico, permitindo que se
sustentasse a vida artificialmente, adiando, por assim dizer, a morte do paciente.
Hoje com a sofisticação de exames de imagem (ultrassonografia, ecografia,
tomografia computadorizada), os medicamentos de uso contínuo e a criação de máquinas
para sustentação da vida, as doenças
graves se tornaram crônicas (vide a AIDS) e os pacientes vivem pelo menos 10 anos mais do que
na década de 80, garantem as estatísticas;
IV) A Resolução n.
1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina, publicada no Diário Oficial da
União em 31 de agosto do ano passado, passou a disciplinar o chamado Testamento
Vital, também conhecido como “diretrizes antecipadas”, pelo qual qualquer
pessoa maior e capaz pode estabelecer livremente que tipo de tratamento aceita ter, ou proíbe terminantemente, no caso de doença terminal. O testamento vital
serve de proteção para as situações em que os avanços científicos que permitem a manutenção da vida, por meios artificiais
(tubos, fios e sondas), se contraponham à vontade do paciente que pretende apenas a
possibilidade de uma morte digna e natural;
V) Nos Estados Unidos
apenas 40% dos americanos optaram por deixar registrado como pretendem ser tratados
no fim da vida. Lá o testamento vital é
previsto e protegido pela lei desde 1.990. Mas foi idealizado pelo advogado
americano Luiz Kutner (1908-1993), ativista dos direitos humanos e um dos
fundadores da Anistia Internacional (Living Will);
VI) O caso que mais
emocionou o mundo e serviu de mote para a lei americana foi o da jovem Nancy
Cruzan, que sofreu um acidente de carro, aos 25 anos, entrando em estado de
coma vegetativo. Assim permaneceu por 7 anos, alimentando-se por sonda, até que
os pais, inconformados com aquela situação, percorreram juízos e tribunais, ate
obter, da Suprema Corte Americana, autorização para retirada da sonda, que
mantinha Nancy viva, dando-lhe assim uma morte natural e digna;
VII) O testamento vital
só pode ser utilizado em casos de terminalidade. Na medicina o conceito de
terminalidade é claro e insofismável: “Condição em que a pessoa sofre de um
problema grave e incurável e que não responde mais a tratamentos capazes de
modificar o curso da doença”;
VIII) Além dos Estados
Unidos, também a Holanda, a Suiça, Portugal, Alemanha e Argentina são países
que dispõem de medidas semelhantes ao testamento vital. O fundamento jurídico e
moral das “diretrizes antecipadas” é o princípio da dignidade da pessoa humana,
previsto como um verdadeiro meta-princípio constitucional na nossa Carta de
1.988;
IX) Já na vigência da
Resolução 1.995/12, que tem força de lei em nosso país, a médica geriatra Ana
Cláudia Arantes propôs a 100 pacientes com mais de 65 anos a elaboração do
testamento vital. Apenas 10 concordaram. A maioria porém foi evasiva: “Ainda é
cedo para pensar nisso”;
X) O Presidente do Conselho
Federal de Medicina, ao estabelecer a diferença entre eutanásia e ortotanásia,
dá um exemplo elucidativo. Se um paciente em estado vegetativo tem os aparelhos
desligados, isso pode ser considerado eutanásia, que é crime. Se ele decide e
avisa o médico, quando ainda está saudável, que não quer intervenções que
prolonguem a vida, o medico não deixaria chegar a um estado vegetativo, a
pessoa então morre naturalmente. Isso é ortotanásia;
XI) Três conceitos
fundamentais no assunto: Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia. Eutanásia:
abreviação da morte. O médico desliga os aparelhos de uma pessoa que está em
estado vegetativo, dependendo desses aparelhos para viver. Distanásia:
prolongação da morte. O médico liga o paciente em aparelhos e usa a tecnologia
disponível para prolongar a vida ou atrasar a morte. Ortotanásia: morte natural. O médico trata o
paciente, mas em casos terminais, não utiliza qualquer artifício tecnológico para
atrasar a morte do paciente;
XII) Pela sistemática adotada na Resolução, o
testamento vital não reclama forma
especial, embora nada impeça que a
pessoa utilize o instrumento escrito, público ou particular. Basta, porém, que ela comunique o médico de sua decisão, devendo o facultativo registrar a
manifestação no prontuário do paciente. Se vários são os médicos que atendem a
pessoa, todos eles podem registrar a intenção manifestada, que terá validade
independentemente de assinatura, inclusive;
XIII) A manifestação
pode ser revogada a qualquer tempo e a vontade do paciente prevalecerá mesmo
contra a da família. Nesse ponto as
diretrizes são soberanas: nem médico, nem familiar, pode impor tratamento
diverso daquele pretendido pela pessoa. Vale registrar que, nesse ponto
fundamental, estão revogadas disposições em sentido contrário, previstas no
novo Código de Etica Médica, de 2.009;
XIV) Ao mesmo tempo em
que se estimula a pessoa a aceitar a morte, evitando o prolongamento inútil da
vida, com a utilização de meios artificiais, a resolução também incentiva a
disseminação de um novo conceito: o dos chamados “cuidados paliativos”, cujo
objetivo é dar ao paciente em estado terminal a melhor qualidade de vida
possível. Esses “cuidados” estariam a cargo de uma equipe multidisciplinar,
compreendendo médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas etc.
XV) Daniel Azevedo,
Presidente da Comissão de Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de
Geriatria e Gerontologia, diz que a regulamentação da matéria considera a necessidade
de fazer com que a sociedade e os médicos voltem a reconhecer que a vida é
finita.: “Esta ideia se perdeu, e precisamos reconquistá-la”, já que “a essência dos cuidados paliativos
consiste em permitir que a pessoa e seus familiares possam viver plenamente o
tempo que lhes resta. A intenção não é dar anos a vida, mas sim, vida aos anos.
Valorizar o tempo que existe”.
Até amanhã amigos,
P.S. (1) O Papa Paulo XII
já agitava a polêmica, na distante década de 50 do século passado ao asseverar
que “ninguém é obrigado a receber
tratamentos extraordinários para manter a vida em caso de terminalidade”;
P.S. (2) Portadora de
um linfoma não Hodgkin, Jacqueline Kennedy preparou um documento informando o
seu desejo de morrer naturalmente ao lado da família, com a dispensa do uso de
qualquer recurso artificial para manter a sua vida. Foi atendida.
P.S. (3) O Ministério Público Federal ingressou com
Ação Civil Pública perante a 1ª. Vara da Seção Judiciária do Estado de Goiás,
contra o Conselho Federal de Medicina, pretendendo a suspensão liminar da
aplicação da Resolução 1.995/2012. O pedido de liminar, no entanto, foi
indeferido pelo Juiz Jesus Crisóstomo de Almeida. Na decisão o Magistrado
registra que, ao editar a mencionada Resolução, não vislumbra tenha o CFM extrapolado os
limites impostos pela lei que o legitima a regulamentar o assunto.
P.S. (4) A imagem da
coluna de hoje foi emprestada do site zerohora.clicrbs.com.br.
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