Bom dia amigos,
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Imagem do badalado quadro de Edvard Munch datado de
1.893: "O Grito". A interpretação gera ainda hoje grande
polêmica entre os especialistas.E o mais famoso dos qua--
tros quadros e se encontra na Galeria Nacional de Oslo.
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Acho essa coisa de crise de existencialismo uma merda. Mas como em todo ser humano que pensa, dotado de raciocínio e inteligência, vez em quando baixa aí uma necessidade de pensar e repensar a vida no estágio em que se encontra e de exteriorizar o que sente (ninguém teria nada a ver com isso, claro). As linhas abaixo não foram escritas agora, mas nos últimos meses do ano passado quando bateu uma nostalgia da vida passada e de como ela poderia ser vivida de maneira mais sábia ou proveitosa, sabe-se lá, fruto talvez dessa insatisfação permanente que assola todo ser humano. Em todo caso, compartilho esse desabafo com quem pretender tomar conhecimento dele por qualquer razão ou, então, por nenhuma. Abraço afetuoso.
"Doutor,
qual é o diagnóstico no meu caso? Existe
um? Será um só? Vou ter que tomar um
remédio novo? Acrescento ele aos meus oito medicamentos que eu já tomo por decisão do meu
cardiologista, urologista, clínico geral? Como ficam as “interações medicamentosas? É esse mesmo o nome
técnico? Ah, estou perguntando tudo de uma vez? Preciso relaxar? Sou ansioso,
né? Quais serão as próximas restrições que deverei acrescentar àquelas a que já me submeto? É, obedeço a elas, mais ou menos, porque, o senhor não sabe, mas
sou meio rebelde, não totalmente, porque sou cagão também. Doutor! Como o
senhor deve saber a gente não é uma coisa só. Está na moda e eu gosto muito de
dizer que somos plurais. Andei pela vida procurando coerência, autoconhecimento
e outras bobagens. Nunca achei nada que me satisfizesse. Agora, esse negócio de
ser plural me convence hoje muito mais. Eu me lembro de quando ouvi o Tom Jobim dizer a respeito do nosso
“poetinha”, que o Vinícius era um sujeito plural, porque se fosse singular,
chamaria (ou chamar-se-ia, não sei se ainda usam essa tal mesóclise) Vinício de
Moral. O fato é que não consigo mais
segurar a barra da vida. Quero contar uma coisa ao senhor que talvez ajude no
diagnóstico e encontre o remédio certo para o meu mal. Ou então para o senhor
me mandar embora, informando à minha acompanhante que meu caso não tem remédio:
é incurável. Uma semana depois da morte do ator e diretor Jorge Fernando, sua
irmã, entrevistada pelo Fantástico, asseverando sua paixão pelo único mano, de quem se dizia mãe,
avó, companheira, amiga, amante e tudo o mais que se pudesse adjetivar para
explicar uma relação afetiva intensa e
sem limites, disse que sua filha, sobrinha do falecido, a consolou, dizendo que
Jorginho tinha que partir, porque ele não cabia mais naquele corpo. Fiquei pensando
por esses dias e cheguei à conclusão que, de certa forma, a mesma coisa vem se
passando comigo. Sem comparações com o talentoso ator, a verdade é que nunca
fui capaz de deter as viagens que a minha imaginação e a minha cabeça, que
muita gente achava brilhante, me levaram
enquanto caminhava pela vida, dura e difícil desde o início, mas vitoriosa
pelas conquistas pessoais, sociais e
profissionais. Conquistas que me tornaram estimado, mas das quais me sinto “refém”
agora na velhice, quando me cobram permanentemente comportamentos estereotipados
e convencionais do juiz, do advogado, do professor, do pai, do avô, da idade,
da condição social etc. etc. etc. As
minhas viagens, os meus sentimentos, a minha cabeça jamais puderam ser detidos
ou controlados. O corpo, sim. Material e
tangível, pode ser preso, seguro, restrito aos limites de paredes e apelos.
Limitado aos argumentos, ao bom senso, ao medo, aos preconceitos, às exigências sociais e
morais, às minhas escolhas. Doutor, o
meu corpo já não obedece a maturidade ou loucura da minha cabeça e eu não posso
trocar de corpo não é? Nem posso rejeitar a forma com que apareci nesse mundo e
pela qual existo na realidade concreta dessa vida. Doutor, o que eu tenho, é
grave, tenho pouco tempo de vida? A única coisa que me preocupa mesmo é se
posso continuar tomando minhas cervejinhas e fazer as minhas viagens para a
terra do nunca. Sozinho, como sempre viajei. Solitário como acredito que todos nós
surgimos, vivemos e vamos embora deste mundo. Um Whisky, de vez em quando, hein? Será que eu serei capaz
de dar uma de “macho” e mandar meus remédios todos à merda e tomar um porre,
uma última vez nesta vida? Estou mais do que nunca deslumbrado com a juventude.
Quando vejo meus alunos, meninos e meninas,
começando a vida com sonhos e energia, plenos de saúde e de futuro, fico com vontade de me envolver nas suas
vidas, ouvir as suas preocupações, aconselhá-los, quando me pedem palpites.
Tenho vontade de levá-los para casa, me intrometer nos seus sonhos, os quais
gosto de incrementar e incentivar, com o
objetivo quase desesperador de que saibam aproveitar a juventude, sem abrir mão
de suas crenças, de seus próprios valores e de suas opções; que aproveitem o
tempo que lhes é imensurável, por enquanto com a plenitude da sabedoria. É que a gente descobre – e essa descoberta
acontece apenas na velhice - que a juventude, como dizia Bernard Shaw, é
tão maravilhosa que é pena desperdiçá-la em jovens. É um paradoxo mesmo. Sim, já me senti e de vez em quando me sinto
com a sina de um velho vampiro, ávido pelo sangue novo, que lhe garanta um
sopro de vida e de juventude por tempos adicionais de existência. Calma, doutor, não vou chegar a sugar o
sangue dos meus jovens, não recomende minha internação. A comparação é apenas figurativa. E convenhamos,
vampiro não existe. Mas, lá na minha
cabeça, fértil e cheia de truques, a condição de ser real algum dia chegou a
ser decisiva? Saiba, porém, o senhor que a realidade tem muitas facetas e
vertentes. E que um dia disse o poeta francês, com muita razão, que não importa o que seja a realidade fora
da gente, se aquela que a gente sente ajuda a gente a viver e a ser o que a
gente é. Para terminar quero dizer ao senhor que eu não vim aqui por vontade
própria. Fui quase obrigado. Quando as pessoas ficam assim como eu, falando o
que pensam, agindo fora do protocolo e da idade, às vezes sentindo tristeza,
noutras alegria, se recusando a acompanhar a família em programas que não
agradam, ou seja, agindo diferente, pensando diferente do que sempre
supostamente agiu e pensou, ninguém acha que somos camaleões nesse mundo. Mais
fácil é indicar o caminho do psiquiatra. E daquele remédio tarja preta que faz
a gente esquecer quem a gente é, como disse um dia o Cazuza, em “Exagerado”.
Não resista, já me advertiram. É reposição química mesmo que a gente precisa,
não adianta só fazer terapia. Tá, não adianta mesmo é argumentar. Doente nunca
acha que está doente. O melhor é ceder, deixar levar. Mas antes vou gritar bem
alto, naquele tom que as pessoas cultas e educadas não devem usar: Viva
Cazuza! Viva Baudalaire! Viva Bernard Shaw! e abaixo a ditadura da coerência e das convenções. Bem, agora é a
vez do senhor falar. Qual é o diagnóstico? Ah! Antes que o senhor responda,
acrescento mais uma: estou de saco cheio
da política e dos políticos. Me contaram nesta semana que a mais nova denúncia
se refere às tais “rachadinhas”, que tudo mundo no meio político, garantem por aí,
já fez e ainda faz. E o que é a rachadinha, o senhor
não sabe? Eu também não sabia. No meu tempo, “rachadinha” era apenas o apelido
do órgão sexual feminino tão apreciado por uns e indiferente a outros. Mas
hoje, é o nome que se dá àquelas participações “espontâneas” nos salários, que os políticos ou os partidos recebem dos
seus assessores ou dos que eles empregam. De direita, de esquerda, de centro, da puta
que pariu. E se o senhor encontrar o Lula e o Bolsonaro por aí, mande, por mim,
os dois à merda, tá? Não, não quero saber o seu diagnóstico. Não
vou pagar consulta, esqueceu? Isto é só
uma carta. Um desabafo. Um monólogo. Obrigado por me emprestar a sua
condição de interlocutor legalmente habilitado e ilustre. Agora que estou
postando essas reflexões, vou tomar o meu último remédio do dia e tentar
dormir. Para esquecer quem eu sou e a necessidade patológica de saber se essa porra que eu sou, presta para alguma coisa ainda."
Boa
noite!
P.S. O diretor do Museu Munch, Stein Olav Hernichsen, fazendo coro com a curadora da exposição dedicada ao artista em Londres, Giulia Bartrum, afirma que o quadro representa não uma pessoa que grita, mas uma pessoa que ouve um grito e cobre os ouvidos. A declaração é baseada num litografia encontrada do quadro, em que o próprio Munch nele registra uma inscrição do seguinte teor: "Eu senti um grande grito em toda a natureza". Há todavia controvérsias que certamente jamais serão dirimidas;
P.S. (2) O Grito é uma série de quatro pinturas do norueguês Edvard Munch. A obra representa uma figura andrógina em momento de profunda angústia e desespero existencial. E considera uma das obras mais importantes do movimento expressionista e adquiriu um estatuto de ícone cultural, tal qual a Mona Lisa de Leonardo da Vinci. A série tem quatro pinturas conhecidas: dois dos quadros da série, "A Ansiedade" e "O Desespero" se encontram no Museu Munch, em Oslo; outra na Galeria Nacional de Oslo e uma quarta em coleção particular.