terça-feira, 4 de novembro de 2014

SOBRE RUBENS ALVES

“Há escolas que são gaiolas e há escola que são asas.
Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo.


Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.” (Rubem Alves).

Boa noite amigos,

Eu estive com ele em apenas duas oportunidades. Mesmo assim somente em uma delas, convidados por uma amiga comum para um encontro em “petit comitê” é que nos falamos por preciosos minutos. Cerca de 30. Não haverá  outros  encontros nesta vida, porque ele se foi não faz muito tempo. Era um homem fascinante.  Foram muitas e indescritíveis as sensações e especulações provocadas por essa aproximação única e meteórica. Aquele simples e bom mineiro, de sua inesquecível Boa Esperança, sul das Minas Gerais, daqueles que, embora distantes do torrão natal há muitos anos, denuncia, sem qualquer constrangimento, a origem,  no uso de uma ou outra expressão, cá e lá, no jeitão que economiza palavras, nos “uais” de espanto ou indagação, ou  nos “trens”, que servem para designar tudo e qualquer coisa. O semblante revelava, como na sua poesia e retórica, uma alegria profunda pela vida[1]. Pela experiência amealhada de forma ampla,  variada e significativa. Ali estava diante de mim o que sempre me fascinou no homem: o ser plural, com naturalidade. Aquele capaz de viajar livremente pelo universo do conhecimento.  O poeta, o escritor, o cronista, o filósofo, o pedagogo, o músico, o psicanalista, o teólogo[2] festejado em cada um desses departamentos separados, unicamente, para fins didáticos. Alguém que reunia e carregava  as marcas de situações, funções, profissões  e acasos e que de todas elas não deixara escapar a essência do aprendizado extraído das experiências pessoais e  humanas[3]. Experiências que o transformaram, no ocaso da existência, num homem mais humilde e com um olhar terno, generoso e piedoso para todos os seres e as contingências que eles carregam na passagem por essa vida. Levei nessa noite um  de seus preciosos livros[4] e pedi que ele me brindasse com um autógrafo.  Ousei lhe contar dois dos meus “causos” que ele ouviu atentamente e sorriu no final por sinceridade, gentileza ou por efeito da euforia adicional do whisky que bebíamos saboreando, como devem ser apreciadas as bebidas alcoólicas,  durante o breve colóquio. Há pouco tempo, passando por uma das casas - 
 em que vivi parte da minha infância aqui em Campinas, me lembrei dele. Em um de seus livros, ao narrar memórias de  sua marcante infância lá na zona rural de Boa Esperança, lembrava da casa de seu avô e de como ele a julgava grande, do tamanho da sua felicidade forjada na pobreza[5]. E nesse imaginário afetivo, já na idade adulta, veio a constatar que esse lugar era pequeno, muito menor que a imaginação generosa infantil lhe proporcionara. Assim também me senti no dia em que voltei a rever a minha casa de adolescência, de onde saía para a escola, para as brincadeiras de rua  ou para passeio com os amigos do bairro. De outra feita, falando em colação de grau oficial aos Bacharéis de 2.004, como Diretor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, não pude deixar de observar aos formandos, que a palavra “formatura” significava, na exata linguagem da escola tradicional, reuni-los numa mesma “forma”. De moldar, como dizia Rubens Alves, como num ritual do  rolo em plástico, cada um dos alunos, a uma fórmula que, quando pouco, lhes roubava a essência da individualidade  e a liberdade de pensar,  de criar, de voar[6]. Rubem Alves foi um revolucionário a seu modo. Jamais parou no tempo ou fez concessões. Se achava parecido com o mar de Minas que, segundo o poeta “não é no mar; o mar de Minas é no céu, pro mundo olhar para cima e navegar, sem nunca ter um porto onde chegar.” E concluía: “Acho que, porque nasci em  Minas, dentro de mim é assim, como esse navegar sem nunca ter um porto onde chegar. Vou contando e recontando a minha estória sem nunca chegar a uma conclusão, as peças fazendo balancê, se remexendo, um quebra-cabeça que não termina nunca pois sempre a travessia pode ser feita de outro jeito.” Fiquei sabendo de sua morte quando não estava em Campinas. Melhor assim. Não gosto de velórios de pessoas queridas e admiradas. Prefiro tê-las vivas na memória e no coração. Me contaram que ele pediu à família que fosse cremado. E que suas cinzas fossem espalhadas, num dia qualquer, pela Mata da Fazenda Santa Elisa. Na sua Campinas, que ele fixou como sua residência durante muitos anos e até a morte. Pertinho da Unicamp, instituição que elegeu para exercer o que considerava a mais nobre de todas as suas funções: a de professor. Um professor que não tem a pretensão de ensinar, mas de inspirar. Na Mata, onde moram  as borboletas, o sapo, o jequitibá, as lagartas, as personagens de Monteiro Lobato, o príncipe e a princesa e  a natureza que Rubens trouxe da infância perdida para a sua poesia, as suas metáforas e o nosso encantamento. Tive um imenso prazer em conhecê-lo nesta vida, por meio de sua rica e profunda obra, e  pessoalmente, um pouquinho naquela noite de inverno,  na casa da amiga Lenide, lá em Barão Geraldo.

Até breve amigos,

P.S. (1) A imagem que abre a coluna de hoje foi emprestada de quemtemfomepoesiacome.blogspot.com..  A imagem do poeta foi emprestada de oespiritualismoocidental.blogspot.com.







[1]Plantei árvores, tive filhos, escrevi livros, tenho muitos amigos e, sobretudo, gosto de brincar. Que mais posso desejar? Se eu pudesse viver minha vida novamente, eu a viveria como a vivi porque estou feliz onde estou.”
[2] Rubem Alves foi um dos fundadores da Teologia da Libertação. A esse respeito, um dia escreveu: “Eu achava que religião não era para garantir o céu, depois da morte, mas para tornar esse mundo melhor enquanto estamos vivos. Claro que minhas idéias foram recebidas com desconfiança”
[3] Ao sistematicamente privilegiar a experiência como sensação pessoal da qual  extraí as verdades nas quais  acredita, em detrimento dos dogmas, Rubem Alves se aproxima, segundo julgo, do grande escritor alemão, Herman Hesse, que aliás é um dos seus autores preferidos.
[4] “A Alegria de Ensinar”/Rubens Alves – São Paulo: Ars Poética, 1.994, 4ª. edição.
[5]Do tempo da pobreza só tenho memórias de felicidade.”
[6] É o ritual dos rolos em plástico. Formatura é isto: todos ficam iguais e ajustados da mesma forma. Moldados pela mesma Forma. Assim, o grande poeta Rubem Alves se refere à escola, quando fala da escola e de sua experiência institucional” (trecho do discurso que proferi naquela ocasião)

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