quarta-feira, 29 de maio de 2013

CASA DE PROSTITUIÇÃO - UMA SENTENÇA INUSITADA




 "Amanhã ninguém sabe, traga-me uma morena, antes que o amor acabe" (Chico Buarque de Holanda).


Boa noite amigos, 

A prostituição, antes de ser reputada em tempos modernos, no ocidente, como prática a ser punida no campo do direito penal, tem sido considerada mazela social, como tantas outras, a ser combatida com medidas muito mais pedagógicas e profiláticas do que com penas criminais.
No entanto, tudo aquilo que gira em torno da facilitação  de sua prática, o que diga respeito ao benefício auferido por terceiro de sua exploração etc., tem sido sancionado pelo direito penal.
Daí os crimes de rufianismo (participação direta nos lucros da prostituta ou sustento por ela com produto da prostituição), de favorecimento à prostituição (Indução ou atração de alguém à prostituição, facilitando a sua exploração ou impedindo o abandono), de lenocínio em várias modalidades, inclusive de tráfico de mulheres etc.
No velho Código Penal de 1.940, há ainda o crime de “casa de prostituição” previsto no seu artigo 129.

Eis a descrição do tipo:
“Manter, por conta própria ou de terceiros, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação, direta do proprietário ou gerente”.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”

É a velha e conhecida “zona”,   lugar onde, no passado, os meninos de classe rica ou média eram levados pelos próprios pais ou parentes, para receberem o “batismo”  ou a iniciação sexual.

As casas de prostituição sempre existiram e por meio delas é que se garante, às prostitutas, a sua prática convenientemente segregada e supostamente tranquila.

Por isso, apesar de se tratar de crime habitual, a manutenção de local com esse propósito, certo é que o Estado, por seus agentes, prefere fazer “vistas grossas” e raramente se tem algum flagrante (o flagrante nos crimes habituais tem que demonstrar essa habitualidade, o que não é simples, nem fácil) ou denúncia por esse tipo de delito.

Há sérias dúvidas, ainda, quanto ao interesse da sociedade, dentro de seus valores morais atuais, em continuar sancionando tal conduta, pois se trata de crime contra os costumes.

Mas há um “causo” muito interessante envolvendo o assunto.

Nos idos da década de 60, na vizinha e progressista cidade de Limeira, apareceu um Promotor Público (era assim que se chamava na época o Promotor de Justiça) que, ao contrário de seus antecessores, resolveu denunciar a dona de um bordel e suas “meninas” (14), justamente pelo crime de casa de prostituição.

A Comarca era dotada de apenas uma Vara, com um único Juiz, polêmico, conhecido por ser inegavelmente erudito, poliglota, mas também pelo inusitado de suas sentenças e comportamentos.

Seu nome:  Dr. Francisco Ignácio Quartim Barbosa.

Dizem as más línguas que o Dr. Quartim tinha amizade e simpatia pela proprietária do tal bordel que, ao ensejo de sua citação para responder à ação penal, foi se queixar a ele quanto à atitude do tal Promotor.

Fato é que o Quartim ficou, ainda consoante aquelas más línguas às quais me referi, “puto da vida” com a pretensão do Ministério Público de processar as tais mulheres, pelo tal crime fora de moda e de propósito.

Mas, tentando permanecer sereno, recebeu a denúncia e marcou data para o interrogatório das quinze rés.

No dia marcado, Quartim teria chamado o Oficial de Justiça mais burro da Comarca  e solenemente determinado:

Senhor Meirinho. Faça entrar as imputadas”.

E o meirinho, cumprindo a ordem:

Atenção putaiada. Todas pra dentro”.

Realizada  a instrução processual e depois dos debates finais, Quartim então prolatou a sua sentença, absolvendo as acusadas, sob  invocação de que elas estariam agindo em permanente estado de necessidade social.

A solução inusitada, peculiar e curiosíssima veio depois de longa fundamentação em que tecia pontos de vista acerca da prostituição, da hipocrisia social, da liberdade de sexo para pobres e ricos e daquilo que chamou de “função social” do prostíbulo.

Cópia da tal sentença durante décadas correu o Estado de São Paulo e é conhecida de grande parte dos envolvidos com o mundo jurídico.

Transcrevo-a, no entanto, aqui, para que o leitor possa conhecer o seu teor e um pouco o seu prolator, figura que se tornou notável na Magistratura de São Paulo.

Como transcrição fiel está redigida na língua escrita da época e com eventuais erros ou equívocos do próprio autor.

Ei-la:

VISTOS, ETC.

A PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE LIMEIRA ofereceu denúncia contra MATILDE RODRIGUES, vulgo “Terezinha Portuguesa”, ONDINA DE SOUZA, vulgo “Leoneta”, JULIA DE MELLO, VIRGILIA GLORIA DE CARVALHO, vulgo “Chiquita Bacana”, ELVIRA AMARAL, IRANY BISPO DA LUZ, ERNESTA RODRIGUES, GENY LEONCINI, ESTER RODRIGUES, MARLENE PESSI, STELLA PASSARETI, PASQUALINA ALVES DE OLIVEIRA, EMILIA SASS, YOLANDA FERRAZ e ALZIRA DA SILVA, como incursas no art. 229 do Cod. Penal, porque vem mantendo por conta própria casa de prostituição nesta cidade, com intuito de lucro.
Seguem-se o rol de testemunhas e os autos de inquérito policial. Recebida a denúncia e citadas as rés, foram submetidas a interrogatório em que admitiram a imputação.
Em defesa previa se propuzeram demonstrar a sua inocência no sentido de que não exploram o comércio carnal de outras, mas apenas lhes propiciam habitação comum, na qualidade de locadoras de cômodo e fornecedores de pensão, e na peor das hipóteses o erro de fato deve ser reconhecido, diante da ciência e paciência do poder de policia, que chega a regulamentar a atividade ora incriminada.
Contentou-se o M. Público com duas testemunhas e a DEFESA desistiu das suas. Nada se requereu na fase do art. 499 do Cod. P. Penal e na do art. 500 do mesmo estatuto a PROMOTORIA procura refutar o erro de fato alegado nas defesas previas e se aparta de jurisprudência isolada, para pedir afinal a condenação das rés.
As alegações finais subscritas por todos os DEFENSORES, se reportam à jurisprudência recente que em caso idêntico absolveu.
É o relatório.
Passo a deliberar:

Levanta-se o Órgão do Ministério Público diante das quinze Frineias que trouxe a barra deste Tribunal e cuida com o seu exemplo empolgar também esta vara, diante da nudês forte da verdade social do meretrício, sem que o disfarce o manto diáfano da fantasia do erro de fato.
A letra do art. 229 do C. Penal, parte do princípio de que somente os réprobos, se afastam da castidade preconisada por todas as Igrejas e procuram, só eles, as prostitutas.
O postulado é falso porque nem os votos perpétuos de castidade são todos eles guardados sempre. A fornicatio simplex continua livre desde que não ofenda o vinculo conjugal, a menoridade, a liberdade sexual e o pudor público. Outro postulado falho da lei penal é que todas as mulheres que têm liberdade jurídica de dispor do seu próprio corpo, tenham independência econômica para manter, por si mesmas um quarto com instalações sanitárias, num grau mínimo de higiene, para exercer o seu comercio, de que não estão proibidas. Isto quer dizer que se uma mulher tem recursos para manter um apartamento discreto e higiênico, os pecados que ali se cometerem,são indiferentes à ordem jurídica. As pobres e deve havê-las também para os pobres, teriam que afrontar na rua, o risco das batidas policiais e os seus freqüentadores o perigo inevitável da falta de higiene. Diante desse problema crucial, surge a figura da locadora de cômodos e fornecedora de pensão, que possibilita aos ricos, pobres e remediados a satisfação de suas necessidades sexuais, acoberto dos percalços da indiscreção dos invejosos, inclusive os próprios policiais de ronda que não fazem votos de castidade e ainda dos perigos da contaminação venérea e ainda do escândalo que a sociedade experimentaria com o amor livre, também ao ar livre. A alugadora de quartos, não merece um diploma de cidadã emérita, por certo, mas desempenha um papel importantíssimo de equilíbrio social. Basta-lhe a infâmia ditada em parte pela sinceridade de alguns puros e pela hipocrisia da maior parte. Desempenha ela, verdadeira função social, constituindo a prática da manutenção do bordel, fato praticado em estado de necessidade, previsto no art. 19, inciso I, do Cód. Penal. Não se trata de perigo atual para o próprio agente, mas de perigo atual, futuro e perpétuo para a comunidade e ela está agindo, embora não o saiba, na defesa de toda a sociedade, constituindo o fulcro do abcesso de fixação. Sem casas de mulheres públicas a horda enfurecida de machos, não poupará os redutos familiares, nem o respeito devido aos logradouros públicos e os tarados se contarão por mil. O problema da prostituição, não é  problema de mulheres, senão de homens. Teòricamente, todas as prostitutas poderiam ser fuziladas no paredão, mas o que seria dos barbudos? O que seria do remanescente das mulheres honestas? Pode parecer extranho esta excludente de crime em fato desta natureza, mas se atentarmos para o absurdo da escapatória pelo êrro de fato, verificaremos que se trata apenas de tapar o sol com uma peneira, porque nenhum juiz tem a coragem de atirar a primeira pedra, porque nos seus belos tempos de estudante, sabia muito bem conciliar o Código Penal e as noitadas alegres e não pode por a mão no fogo por sí próprio, de que num futuro, talvez não distante, quando já estiver na grande metrópole pagã, onde o seu voto de castidade terá pouco sentido, não vá recordar a prêço muito mais alto, o seu tempo de acadêmico, se as sucessivas promoções por antiguidade não tirarem completamente o sentido da frase: recordar é viver.



Em face do exposto e decidindo, J U L G O improcedente a ação penal e ABSOLVO as rés, com fundamento no art. 19, inciso I, do Cód. Penal.
P. R. e I.
Limeira, 21 de Março de 1.962."

Até amanhã amigos:

P.S. (1) A imagem da coluna de hoje foi emprestada do blog "promotoriadeseara.blogspot.com". A Comarca de Seara fica no Estado de Santa Catarina;

P.S. (2)  A sentença e o meu comentário a respeito dela foram transcritos do meu Livro "Causas & Causos II" da Editora Millenium;

P.S. (3) A cópia da sentença do Dr. Quartim me foi fornecida há muitos anos, pelo querido amigo, o Desembargador Aposentado Dr. José Augusto Marin.     







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