Boa noite amigos,
Saudosos os meus primeiros tempos de cartorário.
O "causo" de hoje aconteceu comigo mesmo nos ditos tempos. E está no meu livro "Causas & Causos n. II" publicado pela Editora Millenium. Vai lá:
“Embora os cílios traiçoeiros. Te dêem esse ar esquisito. Decerto a um anjo
interdito. Ó maga dos olhos faceiros” (Charles Baudalaire, Canção da Sesta)
"O semblante irradiando candura, despertara, de
imediato, no Magistrado, enorme simpatia.
Até o esboço de
um sorriso no canto dos lábios surgira espontaneamente, o que não deixava de
ser surpreendente naqueles tempos em que
severos problemas de saúde acumulados produziam mau-humor, além da conta, no Meritíssimo
Juiz.
Esparramada sobre a cadeira menor que os quadris, a
vetusta senhora era só sorriso e alegria.
A obesidade e os cabelos brancos contrastando com o
negror da pele produziam uma imagem forte e presente de uma espécie de "Mamãe
Dolores", personagem de novela de rádio e televisão da
época.
Na mesa grande, em pólos separados, o Promotor de
Justiça e o Dr. Advogado, distantes e desinteressados do ato judicial que se
realizava.
Qualifiquei a interroganda e sem dizer palavra, como
de costume, coloquei os autos do processo na mesa do Magistrado, senha tácita
entre mim (escrevente) e ele (Juiz), que
sinalizava para a já possibilidade do início do depoimento.
No caso tratava-se de interrogatório em um processo de
interdição.
Interdição da
velhinha, colhida por um problema de demência senil no ocaso de sua suposta
próspera existência.
- Tudo bem com a senhora? Arriscou o Magistrado.
- Tudo bem, sim senhor, graças a Deus.
- A senhora se sente bem?
- Me sinto, sim senhor. Muito bem.
- A senhora come bem?
- Como sim que só vendo.
- Tem boa apetite, então?
- Tenho seu dotô, por Nossa Senhora.
- A senhora dorme bem?
- Que é uma beleza.
- Toma algum remédio para dormir?
- Nenhum. Só meu leitinho.
O interrogatório ia causando surpresa a todos: Juiz,
Promotor, Advogado...
A interroganda ria, respondia com desembaraço,
denotando compreensão das questões formuladas, plena coerência e capacidade de organização mental e, além de
tudo, garantia que não sentia coisa nenhuma.
- A senhora se sente bem?
- Me sinto sim senhor. Me sinto muito bem.
Mas o Magistrado insistiu, irresignado:
- A senhora não sente nadinha, nadinha de diferente.
- Não, dotô, tá
tudo bem seu dotô. Oiá, só tem uma coisa. É que de vez em quando eu vejo uma
homarada[1] correndo
atrás de mim.
A afirmação engraçada, causou um certo alívio geral.
É que na toada em que ia o depoimento, a coisa da
interdição parecia exagerada. Mas agora, a perseguição da homarada, convenhamos.
O Juiz então parou e começou a ditar o depoimento.
- Que a depoente afirma que come bem, dorme bem e
ordinariamente não sente nada de estranho.
Lá fui eu, exímio datilógrafo, mandado ver na velha
Remington, registrando tudo com máxima rapidez e fidelidade.
E aí ele prosseguiu:
- Que, no entanto, de vez em quando, vê uma enorme
arara correndo atrás dela.
Epa! Enorme arara?
O Juiz, com surto de labirintite, de vez em quando,
ouvia coisa diferente daquilo que dizia o interlocutor e já tinha trocado
por exemplo, “calça comprida” por “tosse comprida”, naquele causo que eu contei
no primeiro livro.
Parei por um instante e quase protestei: - Doutor, ela
não vê arara, vê homarada.
Mas que o que. E o medo que eu tinha dele. Sei lá como
reagiria diante daquela correção que se impunha. E ainda na frente de todo mundo.
Em fração de segundos pensei com os meus botões: Quer
saber de uma coisa: vendo homarada ou vendo arara, essa "véia" vai sê interditada
do mesmo jeito. Vai pau assim mesmo.
E foi!
Assim a velhinha que via homarada, passou a ver uma enorme arara e foi interditada por isso,
como o seria por aquilo.
E eu me salvei de levar uma suposta carraspana por contestar o chefe na frente dos outros.
E chefe é coisa lá que se conteste sem proveito?"
Até mais amigos e bom final de semana.
P.S. (1) A imagem da coluna de hoje foi emprestada de passarosdobrasilluisadrummond.blogspot.com;
P.S. (2) A arara-azul-grande é uma das espécies de arara encontrada na Floresta Amazônica, no Cerrado e no Pantanal. Apesar de proibida a sua venda é popular no comércio ilegal de aves. É também conhecida como arara-jacinto, arara-preta, araraúna e araruna.
P.S. (2) A arara-azul-grande é uma das espécies de arara encontrada na Floresta Amazônica, no Cerrado e no Pantanal. Apesar de proibida a sua venda é popular no comércio ilegal de aves. É também conhecida como arara-jacinto, arara-preta, araraúna e araruna.
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