Boa
noite amigos,
Luiz Carlos Ribeiro Borges é o nome dele, uma pessoa muito especial. Conheci
o Borges na década de 80, na primeira fase da minha advocacia (a segunda teve início em 1.997, quando me aposentei da
Magistratura de São Paulo). Borges era Juiz Titular da 4ª. Vara Cível da
Justiça Estadual de Campinas, Estado de São Paulo, e, sem nenhum favor, um dos
mais completos, competentes, sensíveis e
talentosos Magistrados que conheci na minha trajetória pelo vasto mundo do Direito.
Acompanhei a sua judicatura com entusiasmo
e seu perfil de homem e magistrado serviram como uma das referências nas quais
me fundamentei tanto para buscar o meu modelo de Magistrado, alvo da busca de
um aperfeiçoamento contínuo, quanto para
transmitir, quando pude e posso, aos meus alunos e amigos as qualidades esperadas de um julgador. Borges foi
promovido para a Comarca de São Paulo, onde assumiu uma Vara da Infância e
Juventude e, posteriormente, guindado a Juiz do extinto 1º Tribunal de Alçada
Civil de São Paulo. Aposentado no referido Tribunal, ostenta a condição de Desembargador do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo. Com a aposentadoria não se desligou da sua área de conhecimento, e ainda hoje se dedica a uma
advocacia diferenciada pela qualidade, fruto de seu talento e vasta experiência.
Borges é também um intelectual, dedicado às artes e à cultura em geral.
Vice-Presidente do Centro de Ciências Letras e Artes de Campinas e curador de
sua vasta e relevante biblioteca, foi também guindado, com muita justiça, a membro da Academia Campinense (a de
Campinas, não de Campina Grande) de Letras, onde é muito respeitado e estimado
pelos seus confrades. O Borges me deu a honra de conhecer um conto de Natal que
ele escreveu por esses dias. Achei-o excelente e pedi autorização para
reproduzi-lo aqui no blog. Autorização escrita conferida, aí vai como presente
aos amigos e leitores deste blog:
"O INIMIGO SECRETO
Naquela tarde,
Nicolau retirou-se mais cedo do escritório (Empédocles & Sebastião
Advogados Dissociados) onde cumpria a penosa função de estagiário, com o
propósito de comprar o presente destinado a seu inimigo secreto.
Esta havia sido a
invenção daquele ano de um dos sócios da empresa, o Dr. Empédocles
(estranhamente, o outro sócio, Dr. Sebastião nunca aparecia, jamais deixava a
sala em cuja porta se ostentava a placa com o seu nome). Já no ano anterior ele
havia surpreendido a todos, ao aparecer vestido de Papai Noel, porém com um par
de chifres na testa e armado de um tridente, com o qual espetava a virilha dos
homens e as ancas das mulheres.
Ao criar a nova instituição, que denominou “Inimizade
Secreta”, a facção Empédocles da dupla de advogados (seria mesmo uma dupla? O
invisível Sebastião não seria senão mera identidade oculta do próprio e
esquizofrênico Empédocles?) anunciou que se tratava de mais uma forma eficaz
para que advogados, estagiários e funcionários dessem ênfase ainda maior ao
clima de ódio, inveja, rancor e ganância
que imperava no ambiente de trabalho, e que ele próprio fomentava por todos os
meios, por acreditar que uma atmosfera de permanente e feroz disputa entre
todos nós, cada qual tentando sobrepor-se
aos outros, ridicularizar e destruir os outros, seria salutar e
produtiva para a prosperidade do escritório.
Ali, os advogados
pisoteavam os estagiários, os estagiários bolinavam as recepcionistas, as
recepcionistas infernizavam a vida da moça da copa e a moça da copa cuspia no
café dos advogados.
Após anunciar a
novidade, o Dr. Empédocles promoveu o sorteio de inimigo secreto, mediante a
distribuição de papeizinhos cuidadosamente dobrados para esconder o nome do
infeliz sorteado.
Mal apanhou o seu,
Nicolau, enojado e sem mesmo consultar o nome escrito na papeleta, saiu às
pressas do escritório, decidido a se desfazer o quanto antes da odiosa
incumbência.
Ao invés de entrar nalguma
loja convencional, encaminhou-se para uma rua do centro comercial onde se
concentravam centenas de barracas e quiosques de vendedores ambulantes, que
expunham as mercadorias mais exóticas.
Foi quando, ao abrir
a papeleta, constatou com aborrecimento que nela não se continha nenhum nome
escrito. Teria sido mais uma perversidade do Dr. Empédocles? Por essa forma ele
tornaria ainda mais tormentosa a escolha do presente ideal, uma vez destinado a
um inimigo não identificado e, por isso, mais que nunca secreto? A tanto
chegaria o maquiavelismo do Dr. Empédocles (ou, em verdade, quem assim em tudo
agia, não seria em verdade o Dr. Sebastião, ao passo que o Dr. Empédocles não
seria senão uma contrafação ou até mesmo uma sórdida simulação, maquinada por
algum deles com o objetivo de se locupletar ilicitamente, apoderando-se em
dobro da parte que caberia aos sócios na distribuição das receitas?)?
Logo em seguida,
Nicolau deu de ombros, pois o que importava o desconhecimento do destinatário
do presente a ser adquirido? Quem quer que fosse, dentre os desprezíveis habitantes
do escritório, seria merecedor do mais degradante dos prêmios.
Consultando as
barracas, ficou indeciso entre várias opções: entre os livros expostos num
sebo, o best-seller “Punhalada nas Costas”, ou, pelo contrário, o encalhado
“Manual de Iniciação ao Suicídio”? Pastilhas de arsênico, uma gaiola com
filhotes de cascavel, uma caixa de ferramentas para autoimolação, um porta-retratos, com a foto do próprio
Nicolau, onde ele se exibiria insolentemente nu e de cócoras?
Percorreu toda a
extensão da rua sem identificar nada adequado, até sair noutra via pública onde
de ambos os lados se enfileiravam lojas de departamentos, com mercadorias que,
miseravelmente, só fariam a alegria de quem fosse agraciado.
Nicolau sentiu-se decepcionado, soturno, sombrio,
acabrunhado. Suspeitava, obscuramente, que traíra as recomendações e conselhos
de Empédocles & Sebastião, que, quando de sua admissão, em uníssono o
alertaram de que a existência humana era uma guerra na qual só os combatentes mais cínicos e intimoratos
sobreviviam e que por isso o escritório equivalia a uma verdadeira escola de
gladiadores.
Eis que o assaltou a
sensação de que, desde o outro lado da rua, algo, que ardia ou palpitava, mas
ainda permanecia indistinto, o atraía vigorosamente, o convidava, o desafiava.
Seu olhar cruzou celeremente a rua, voou para a calçada oposta onde se concentrava a massa multiforme de
criaturas de carne e osso e de objetos de vidro, concreto, plástico e aço, até
identificar aquilo que o seduzira: o fulgor de um sorriso.
Após um instante de incredulidade,
reconheceu Angélica, sua colega de
faculdade, em cujo sorriso cintilavam estrelas, pedras preciosas e girassóis,
iluminando e fazendo resplandecer a tarde crepuscular e sombria.
Nem por um momento
lhe passaram pela mente as advertências dos sábios em torno da ambiguidade e da
simulação do sorriso feminino, sobre as traições que nele porventura se ocultem.
Muito menos cogitou de que a traição, que então se encenava, seria das
circunstâncias: Angélica sorriria para outrem, às suas costas; ou o sorriso não o era, mas o banal reflexo
dos derradeiros raios do sol poente.
Só o que lhe
importava, naquele instante em que as sombras se desvaneciam, era, mesmo se
ilusório, o esplendor do sorriso, que o convocava a prostrar-se de joelhos no
asfalto, em atitude de veneração, como se os dentes diamantinos de Angélica
fossem os portadores de alguma inapreensível mensagem, anunciadores de alguma
absurda salvação.
Através de seu olhar
atônito e cheio de graça, Nicolau exibia a Angélica, em oferenda, buquês de
rosas vermelhas, frascos de perfumes orientais, caixas de bombons de licor
importados da Bélgica e até mesmo cartões coloridos, com figuras de sinos,
neves e trenós.
Luiz Carlos R. Borges
Dezembro de 2014."
Grande
abraço amigos e feliz ano Novo.
P.S.
(1) Foi difícil encontrar foto do Borges na Internet. Já esperava por isso,
tendo em vista a conhecida simplicidade do nosso amigo, que não gosta de ser
destaque. Mas consegui resgatar algumas que a escritora e membro da Academia
Campinense de Letras, Ana Suzuki, publicou em seu blog recantodosacademicos.blogspot.com, de onde emprestei as fotos que publico na
coluna de hoje. Elas foram tiradas de uma viagem que Borges e a família fizeram
à França, lá descobrindo uma pequena localidade onde Marcel Proust passou parte
da infância, morando na casa de um tio.
P.S.
(2) O famoso escritor depois escreveu o seu antológico “Em Busca do Tempo
Perdido”, com as memórias dessa infância perdida;
P.S.
(3) Reproduzo aqui o depoimento do próprio Borges para explicar sua visita à
cidadezinha de Illiens, na França: “Graças às fuçações de meu filho Rafael,
fomos sair numa cidadezinha francesa chamada Illiens. E a Combray fictícia de
Marcel Proust e por isso o nome da cidade hoje é Illiens-Combray. Ali o escritor viveu
alguns anos de sua infância na casa dos tios, a qual se transformou num museu”.
P.S.
(4) As fotos são da visita ao aludido museu. Na última Borges ao lado de um
exemplar de François Le Champi, o romance de George Sand de 1.850.