Boa noite amigos,
O "causo" da coluna de hoje foi extraído do meu livro "Causas & Causos" n. II, da Editora Millenium. Ele aconteceu de verdade aqui mesmo em Campinas, na 4a. Vara Criminal. E comigo, enquanto Juiz Substituto da Comarca, na qual um dia retornei como Titular da 5a. Vara Cível. Emprestei a graciosa imagem-caricatura de obviousmag.org.
Vamos lá:
“Eu morava na zona e tocava sanfona pras
puta dançar. Que tristeza me deu, uma puta morreu e eu parei de tocar” (Autor
desconhecido, Sanfona na Zona)
O fato era inédito na história do Judiciário Paulista.
Pela primeira
vez os servidores da Justiça resolveram deflagrar uma greve por aumento
salarial e melhoria das condições gerais de trabalho.
Os Juízes encaminhavam-se normalmente para as suas
Varas e ali tentavam realizar as tarefas rotineiras que eram possíveis, tendo
em vista a ausência do corpo funcional. Em alguns casos, totalmente; noutros,
apenas parcial.
A adesão à greve era muita grande.
Juiz Substituto da Comarca de Campinas, cheguei
religiosamente às 13,00 horas na 4ª. Vara Criminal, que havia assumido na
ausência temporária do Juiz Titular.
A pauta das audiências era extensa.
Havia audiências em processos de réus presos e
processos de réus soltos.
Um em especial se relacionava com tráfego de drogas.
Tratava-se de uma apreensão de grande quantidade de
entorpecentes, feita pela Polícia Rodoviária, na Rodovia Santos Dumont, defronte
ao Jardim Itatinga, conhecido bairro de confinamento da zona do meretrício no
município de Campinas.
O experiente escrevente da Vara não apareceu. Aderiu
ao movimento.
Apenas dois funcionários foram trabalhar.
Perguntei se algum deles se dispunha a acompanhar a
audiência.
- Eu posso fazer se o senhor quiser, mas não sou muita rápida na máquina, nem tenho
experiência, disse a Clarinha.
- Não há problema, respondi. Iremos devagar.
E assim dei início à longa instrução criminal do
processo crime relacionado com o tráfego de drogas.
Ouvimos nada menos do que 6 (seis) testemunhas, todas
elas relatando mais ou menos a mesma versão: veículo suspeito viajando pela
rodovia é parado por policial rodoviário.
Depois de algum diálogo, a suspeita e a revista,
quando então, a droga é localizada escondida no automóvel.
Tudo se passara bem defronte ao Jardim Itatinga,
referência geográfica relevante do local da apreensão.
Não perdi tempo. Ouvia e ditava. Ouvia e ditava para a
Clarinha.
A Clarinha devagar, mas esforçada.
A duras penas os depoimentos eram concluídos e
assinados, um a um, pelo depoente, pelos Defensores e pelo Promotor.
O Juiz assinaria tudo de uma vez e no final, como de costume.
Quatro horas depois a longa e exaustiva instrução
chegou ao fim.
Depoentes, réus, advogados e Promotor foram embora.
Fui assinar os depoimentos e resolvi “dar uma lida”.
E para minha total perplexidade, observei que em todos
eles, cada vez que eu ditara “zona do meretrício”, a Clarinha escrevera com
todas as letras: “zona do meritíssimo”.
Olhei para a distinta. Não, ela não ousaria fazer uma
brincadeira dessa natureza. O atrevimento seria impensável. Afinal, ela mal me
conhecia, o processo era real e eu era o Juiz.
Olhei de novo para ela, por alguns segundos, sem dizer nada. Ela,
meio sem jeito, respondeu com um inocente
sorrisinho glacial imbecil.
A leitura dos olhos nada permitia concluir a
respeito do assunto, por certo por ela totalmente ignorado.
Pensei com meus botões: ela não tem a menor ideia do
que seja “meretrício”.
E pelo jeito, também não sabe muito bem o que era a
tal da “zona”.
“Meritíssimo” era a palavra dela conhecida mais
próxima do que supunha ter ouvido o
tempo todo.
Aí a explicação: Meteu o “meritíssimo” no lugar de “meretrício”.
Consequentemente, por uma dessas ignoradas razões de lógica da imbecilidade,
atribuiu a propriedade da “zona” ao
Juiz.
Afinal, deve ter pensado: se o Juiz é Titular de uma “Vara”,
bem que ele pode ser dono da “Zona” (essa conclusão é exclusivamente minha).
Não tinha mais como consertar o que estava escrito,
pois eram muitos os depoimentos e todos já assinados.
O remédio foi deixar como estava.
Observei, porém, na sentença, para efeito de eventual
leitura das peças pelos Senhores Desembargadores, em caso de recurso, o
seguinte:
“Preliminarmente registro que, nos depoimentos, as referências feitas a “zona do meritíssimo”
foram todas equivocadas, querendo dizer evidentemente “zona do meretrício”, que aqui em Campinas está confinada num bairro
denominado Jardim Itatinga, defronte ao qual a apreensão das substâncias
entorpecentes aconteceram, segundo resulta da prova coletada.
Houve reiteração de erro por parte da servidora que
datilografou os depoimentos, circunstância só percebida por este Magistrado ao
cabo de todos eles, quando as partes e testemunhas já haviam se retirado.
Considero relevante também consignar que a servidora não
é escrevente de sala de audiências e se dispôs a auxiliar o Juiz, tornando
viável a audiência de instrução, que se refere a processo de réus presos,
durante o período de greve dos servidores da Justiça.
Fê-lo com imensa boa vontade.
Mas, por certo, não tinha a menor noção do significado
do vocábulo “meretrício”, nem do sentido em que se usara a palavra “zona”.
Agora ela já sabe, se penitencia da ignorância do
passado e promete não cometer mais os mesmos enganos, no futuro.
Assim, registrados o erro e a boa fé da servidora, que
– asseguro - não se atreveria, ademais, a fazer brincadeira em coisa séria, passo à
análise das provas.
....”
Assim, terminei a sentença.
Nunca mais me esqueci do episódio.
A Clarinha já deve ter aposentado.
Dela ficou a
imagem de uma dessas pessoas puras que já não existem nesse mundo, por ignorar,
naquela altura da vida e dos acontecimentos, o que seria o “meretrício”, e
ainda pela imensa generosidade de atribuir a sua propriedade ao Magistrado, que
ela respeitava tanto.
Hoje alguns
jovens também não sabem o que é “zona”, pois ficou fora de moda como
local obrigatório de iniciação da vida sexual dos meninos, na cultura machista
da sociedade brasileira.
E “meretrício” não é termo que se use mais,
convenhamos.
É mais ou menos
como “decaída”, “rufião”, “lupanar” etc.
Outro dia fiz um teste com os meus alunos da Faculdade
de Direito, desfiando um rosário dessas expressões do Código Penal de 1.940 e
de outras legislações antigas e pude comprovar isso.
Não entenderam nada e riram muito.
Um deles, ousou:
- Professor
“tipos o que é isso: grego?"
Até amanhã amigos.
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