quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O DIA EM QUE LANCEI AS CINZAS DE MEU PAI SOBRE O ARAGUAIA

   O  elegante advogado, professor e jurista,  amigo irmão,  Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho, enviou-me texto que escreveu para homenagear seu falecido pai, o competente e humano Magistrado, Desembargador do Estado de São Paulo, Dr. Pedro de Alcântara da Silva Leme, no dia em que, na companhia do irmão médico,  Dr. Luis da Silva Leme,  cumpriam ambos compromisso assumido perante o genitor, de que seu corpo seria cremado e as cinzas atiradas sobre a imensidão do rio Araguaia, última vontade do pescador de tantas pescarias de peixes e almas.
O resultado  – que o autor afirma se prestar a uma necessária catarse  – são períodos de pura poesia, de beleza, de frases bem construídas e que retratam, com talento e sensibilidade, o momento de vazio e saudade experimentado na ocasião.
Pedi autorização para publicá-lo, com o que presto homenagem ao pai (que sempre admirei como homem e Magistrado) e aos filhos (homens íntegros mercê da excelência de criação).
Lembrei-me da homenagem prestada pelo jornalista e escritor Sérgio Bittencourt ao pai morto, o genial Jacó do Bandolim, compondo uma das mais belas páginas da música popular brasileira de todos os tempos e que terminava dizendo  “ Agora resta uma mesa na sala e ninguém mais fala do seu bandolim. Naquela mesa está faltando ele e a saudade dele está doendo em mim”.
Segue o texto:
"PEDIDO e COMPROMISSO


                                   Um pedido feito há muito tempo pelo pai. Um compromisso assumido pelo filho.

                                   O pai, meu pai, nasceu juiz de direito. Cresceu juiz. Tornou-se juiz. Nas histórias que me contava na infância, os personagens arriscavam a vida pela honra, a dignidade prevalecia sobre a esperteza, a justiça vencia a injustiça.

                                   O filho, meu irmão, nasceu médico. Cresceu médico. Tornou-se médico. Nos seus sonhos, todas as pessoas recebiam o melhor atendimento que a medicina pudesse oferecer, o médico salvava o paciente mesmo nas situações mais críticas, a doença perdia a batalha para a medicina.

                                   Pedro e Luis, profissões diferentes, corações idênticos.

                                   Embora nascidos, crescidos e tornados juiz de direito e médico, sempre se apresentaram como pescadores em primeiro lugar, e, em segundo, como corintiano o meu pai e como pontepretano o meu irmão.

                                   Com eles aprendi a gostar de pescaria, embora ainda não tenha aprendido a pescar, por mais que se esforçassem a me ensinar. Conseguiram me ensinar, entretanto, que mais que uns dias na beira do rio, uma pescaria é um estado de espírito, uma forma única de encontrar, ao menos durante aquele período, paz interior, e de obter um fugaz ou mesmo um pleno contato com coisas de maior significado. Só pescando com as pessoas certas para entender.

                                   O pedido do meu pai ao meu irmão foi feito em uma “cunversa” de beira de rio, depois de uns goles de cachaça. Pediu para ser cremado quando morresse, e que suas cinzas fossem jogadas no rio Araguaia. O Pedrão, como nós o chamávamos, tinha horror a lugares fechados. Adorava a natureza, espaços abertos, e especialmente o Araguaião, “o mais lindo poema que Deus derramou sobre o sertão brasileiro”, como não se cansava de repetir, citando José Mauro de Vasconcellos.

                                    Não presenciei o pedido, pois ainda não pescava nessa época (quanto tempo desperdiçado). Meu irmão começou a pescar muito cedo com meu pai, mas eu passei a acompanhá-los somente mais tarde. Conhecendo o Luis, sei que não disse sim nem não naquele momento, e deve ter mudado de assunto reclamando que em pescaria não se fala em morte. Mas registrou o pedido e o compromisso estava assumido.

                                   Meu pai faleceu em 2009. Foi um bom juiz, mas foi, acima de tudo, um juiz bom. Exercia a autoridade do cargo sem nenhum autoritarismo e apenas porque acreditava no direito como instrumento de realização da justiça. Diferenciava, como todo bom juiz, o criminoso do homem que, por circunstâncias da vida, comete um crime. Para estes, buscava atenuantes maiores que as previstas em lei, e, se indagado, recitava um antigo dito árabe: “não critique o tropeço dos outros, porque um dia é o seu pé que pode lhe faltar”.  Mesmo aos criminosos, aplicava as sanções estabelecidas na lei com indulgência, condenando-os à menor pena possível para aquele delito. Acreditava na pessoa humana.

                                   A forma como meu pai exercia a judicatura era a projeção de seu caráter e de sua personalidade. Era um homem bom, no sentido mais elevado do termo, profundamente compreensivo com as pessoas, angustiado pela justiça, nos tribunais e na vida. Encontrava a sua paz quando bondade, compreensão e justiça se manifestavam à sua frente. Encontrava paz quando pescava. Em paz, tinha o sorriso mais terno e mais bonito que já vi, e o riso mais contagiante do mundo. Era impossível, para quem estivesse ao seu lado, não sorrir ou rir quando meu pai, em paz consigo, sorria ou ria.

                                   Arrependo-me tanto de não ter compreendido o Pedrão como deveria, de não ter conversado mais com ele (quanta coisa desperdiçada). Desde sua morte, as palavras do apóstolo Paulo me vêm à mente associadas à sua lembrança: “Combati o bom combate, terminei minha carreira, guardei a fé”  (2 Tim 4,7). Legado precioso, fardo pesado, norte obrigatório.

                                   O Luis cumpriu o compromisso em 2010. Levou as cinzas do Pedrão para serem jogadas nas águas do rio Araguaia. Eu e dois amigos muito queridos (pescadores apaixonados em boa parte por obra do meu pai e do meu irmão) fomos juntos.

                                   Coisas de maior significado conspiraram a favor do pescador que queria repousar no rio que tanto amava. O dia estava ensolarado, o Araguaia brilhava, parecia alegre. Meu irmão soltou as cinzas nas águas em uma curva de praia, meio remanso meio corredeira, um lugar lindo, preparado pelo velho rio especialmente para receber o Pedrão. Outras pescarias, em segunda instância, o aguardavam.

                                   Não houve tristeza, apenas uma serena melancolia, a percepção tardia de que ele não pescaria mais conosco. Quando as cinzas foram soltas, vi meu pai sorrindo com ternura. Quando brindamos sua vida, oferecendo um gole a ele e ao seu Araguaia, ouvi o seu riso contagiante.

                                   Todos sorrimos e demos risadas. Afinal, todo mundo sorria e dava risada com meu pai quando ele estava em paz. Até mesmo o rio Araguaia.

                                   para o Pedrão e para o Luis
                                   Janeiro/2011

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