quarta-feira, 26 de setembro de 2012

DE DESEMBARGADOR, FILHO DE MARCENEIRO, JUSTIÇA PARA MENINO POBRE, FILHO DE MARCENEIRO

Boa noite amigos,
 
Na Comarca de Marília o menor Isaías Gilberto Rodrigues Garcia, cujo pai, marceneiro de profissão, foi atropelado e morto, ajuizou, representado pela mãe solteira e empregada doméstica, e por advogado por esta escolhido, ação de indenização contra o atropelador, pleiteando: a gratuidade para demandar e  uma pensão de um salário mínimo, mais indenização por dano moral que sofreu. O Magistrado negou o pedido de Justiça Gratuita, aos argumentos: a)   o autor não ter provado ser menino pobre, e b)  não ter ele peticionado por intermédio de advogado integrante do convênio OAB/PGE. Interposto recurso de agravo de instrumento, foi ele distribuído ao Desembargador PALMA BISSON da 36ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que concedeu liminar e depois redigiu o Acórdão que deu provimento, por unanimidade, ao recurso. Vale a pena a leitura do Acórdão, que transcrevo abaixo, quase na íntegra: “Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro – ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna”.  “Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é. O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante. Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres. Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d’água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou. Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos....”.
O teor do Venerando Acórdão revela a indisfarçável indignação do Desembargador com uma decisão desprovida de qualquer razoabilidade, como se viu, e especialmente, de ausência de sensibilidade. E por outro lado, cheia de poesia, de homenagem ao pai marceneiro e da honra  de ser filho de um marceneiro. E, finalmente,  de ter advogado para pobres, sem vislumbrar paga, a não ser a satisfação de poder servir  e colocar o seu talento como  auxílio na distribuição da justiça para  hipo-suficientes, num país tão injusto e desigual. Do ponto de vista da formação humanística que tanto se apregoa para o bacharel e o profissional do Direito, não há nada mais importante e fundamental do que trabalhar para os necessitados, seja nos Departamentos dos Centros Acadêmicos, seja nas Assistências Judiciárias oferecidas por Faculdades de Direito ou  nas Defensorias Públicas.  Concluo asseverando que “Há Juízes no Tribunal de Justiça de São Paulo”.
 
Até amanhã amigos.
P.S. (1) O Acórdão referido foi proferido no agravo de instrumento n. 1001412-0/0 da Comarca de Marília e pode ser conferido, na íntegra, no site do Tribunal de Justiça de São Paulo; A imagem que ilustra a coluna foi emprestada do site 1ppacaio.com.br
 
P.S. (2) Ao conseguir sucesso numa ação de reintegração de posse que movi, nos primeiros anos de minha advocacia,  em favor de uma velhinha viúva e sem filhos,  de quase 90 anos, injustamente desapossada de seu humilde imóvel, recebi como honorários um cacho de uva Itália, que ela, com sacrifico, suponho, comprou para me presentear. Jamais me esqueci desse gesto e de seu reconhecimento. Lembranças de uma advocacia que se fazia para sustento próprio e da família, mas que tinha espaço, no tempo e no coração,  para assistir, jurídica e judiciariamente, pobres que batiam à nossa porta;
P.S. (3) “Bem aventurados os que têm fome e sede de Justiça, porque serão fartos” (Mateus, V; 6);
 P.S. (4) A expressão “Há Juízes em Brasília” ou como usei aqui “Há Juízes no Tribunal de Justiça de São Paulo” nos remete para aquela da qual estas seriam derivadas. Ela está em um conto de François Andrieux, denominado “O Moleiro de Sans-Souci”. Em 1.745, o rei da Prussia, Frederico II, construiu um belo castelo de verão, mas do palácio se via um antigo moinho que tornava feia a paisagem. O rei era um déspota, porém esclarecido. Mandou que comprassem o tal moinho e o destruíssem. O moleiro, porém, se recusou a vender, porque dele necessitava para trabalhar e extrair renda de sobrevivência.  Por outro lado, estava velho e não encontraria outro trabalho. Indignado com a recusa, o monarca foi interrogar o moleiro e a ele perguntou: Como ousas recusar a proposta do Rei? Eu poderia, se quisesse, tomar a sua propriedade e derrubar o moinho, sem lhe pagar qualquer indenização. Em resposta a essa ameaça, o moleiro respondeu: - Não acredito que o senhor faça isso. Juízes em Berlim. Daí o uso dessa expressão toda vez que se quer elogiar o Magistrado, reafirmando suas virtudes de  independência,  sensibilidade e grau de excelência.
 
 
 

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