Boa tarde amigos,
Hoje, último dia do mês de novembro, domingão muito chuvoso, vai aí um "causo" para aliviar.
Caricatura emprestada de bethmichel.com.br. |
Ele está no meu livro "Causas & Causos" II, Milleniun 2.010, e lembra os meus bons tempos de escrevente.
Vai lá:
“Finalmente chegara o dia da audiência de instrução e
julgamento designada pelo Juiz no rumoroso processo de anulação de casamento.
Começo dos anos 70, o casamento ainda era indissolúvel
no Brasil, por força de preceito constitucional expresso.
Havia sim um movimento em favor do divórcio,
encabeçado pelo saudoso Senador Nelson
Carneiro, mas que ainda não encontrara eco suficiente para viabilizar
Emenda Constitucional.
Além de tudo, era forte a oposição de segmentos e
instituições significativas, inclusive e principalmente da Igreja Católica, que se manifestava francamente contrária à ideia, e
essa posição tinha enorme peso, mesmo com a já cinquentenária secularização do
instituto do matrimônio.
Eram freqüentes, por essa mesma razão, os pedidos de
nulidade ou anulação de casamentos que se revelavam falidos ou de subsistência
indesejável depois de pouco tempo de
celebração.
Sabia-se que o mau ou equivocado passo condenava ambos
os cônjuges a uma vida inteira de abstenção de um outro matrimônio, com as formalidades
e os efeitos legais. O máximo que se
concedia era o chamado “desquite”. Mas o vínculo permanecia.
Em alguns casos, pessoas de alto nível social ou econômico, para dar satisfação
à sociedade, contraíam (ou diziam que contraíam) um segundo casamento em país vizinho ou da
Europa. Mas era só para “inglês ver” como se dizia, mesmo porque o tal
casamento, se realmente tinha acontecido, não tinha efeito no Brasil.
Aqui, como se diz lá em Piracicaba, os cara era “amigado”
mesmo.
Pois bem,
voltando ao “ causo” a hipótese era de
alegação de casamento não consumado, por
suposta impotência instrumental do marido (impotência coeundi).
O varão, por sua vez, contestava a ação, alegando que
não era impotente; que tinha logrado vida sexual regular na juventude; que
tinha se relacionado normalmente com outras mulheres etc. etc.
O dia era de audiência de instrução e julgamento.
Eu era Escrevente. O Juiz, o Dr. Manuel Carlos.
O Luciano, Oficial de Justiça, estava designado,
naquele dia, Porteiro dos Auditórios.
Tratava-se apenas de uma função exercida pelo Oficial
de Justiça e que consistia em permanecer à porta da sala de audiências,
apregoando as partes e advogados e garantindo a regularidade dos trabalhos que
ali haveriam de ser efetivados.
Resolvi sacanear o Luciano.
Saí da sala e confidenciei a ele no saguão de entrada:
- Luciano, você tem uma árdua missão hoje, sabia?
- Que missão? retrucou ele com desconfiança.
- Você sabe que hoje é a audiência daquele caso que
corre em segredo de Justiça, da anulação de casamento?
- É, eu vi aqui
na pauta.
- Pois é, e não é que o Dr. Manuel resolveu determinar
uma inspeção pessoal?
- Inspeção pessoal, onde?
- Onde, não. Em quem, melhor dizendo.
- O que o ce qué
dizê?
- Que a coisa é para confirmá ou negá. Você sabe que a moça diz que o “negócio” do
marido não funciona, mas ele garante que funciona. Você leu, né?
Luciano não
respondeu a pergunta e me olhou de soslaio, imaginando o que viria depois.
- E daí?
- Daí que ele é o juiz e não vai fazer serviço sujo
nenhum, né?
- Sei, e daí?
- Daí que ele perguntou quem estava de plantão hoje e
eu disse que era você.
- E daí?
- Daí que você vai ter que entrar lá no gabinete dele
só com o réu, pegar no negócio dele para
vê se levanta ou não levanta e depois relatá a inspeção que é secreta, por razão
que não se precisa explicá.
O Luciano começou a rir.
Eu tinha levado do Cartório um outro processo que a
mesma autora movia contra o réu para pedir alimentos provisionais, enquanto se
processava a anulação de casamento.
O marido ainda não tinha sido citado.
O escrevente havia expedido o mandado de citação, mas
quando eu percebi que estava próximo o dia da audiência, achei melhor deixar
que a citação se fizesse por ocasião da audiência, quando o réu, por certo,
estaria presente no Fórum.
Não disse uma palavra ao Luciano, que era o oficial
destacado também para o ato da citação.
Retornei para a sala de audiências.
Antes de seu início e das partes e advogados
ingressarem no recinto, falei ao Juiz:
- Dr. Manuel. Tem aqui um outro processo entre as
mesmas partes que depende de citação. O Cartório expediu o mandado. Posso pedir ao Luciano que cite o réu hoje, aqui no
Fórum?
- Pode.
- Se o senhor não se importar posso pedir que o réu
entre no seu gabinete e que o Luciano faça a citação lá dentro, para não
despertar curiosidade ou constrangimento, até mesmo porque é caso de segredo de
Justiça.
- Não só pode como deve, aplaudiu o Magistrado o
cuidado e a prudência que eu manifestava.
Não me fiz de rogado.
Primeiro pedi ao Luciano que apregoasse a audiência e
que solicitasse ao réu que entrasse no gabinete particular do juiz, anexo
àquela sala.
Ele me olhou desconfiado, mas atendeu à determinação.
Eu fiz o Juiz supor que o Luciano já estava inteirado
do assunto, o que não era verdade.
Deixei o mandado dentro da sala sem falar nada para o
Luciano.
O Juiz chamou o Luciano e disse a ele:
- Seo Luciano, o senhor já pode fazer o que o Jamil
lhe disse. O réu se encontra no meu gabinete.
O Luciano corou.
E foi mudando de cores diversas vezes em poucos segundos.
Olhava incrédulo para o Juiz e para mim, paralisado.
Pensei que ele fosse ter um treco.
Mais do que depressa eu me aproximei dele e disse em
tom baixo:
- Ô Luciano, você está bem. Não fique preocupado, eu
acompanho você. Vamos, o réu até que é bonitinho.
Entrei com ele no gabinete para poder, longe
de todos, explicar a gozação e o que se pretendia verdadeiramente dele.
Entreguei o mandado que estava em cima da mesinha.
Ele não se conteve e na frente de um réu surpreso,
bradou:
- O Jamil, filho da puta. Vá pra puta que te pariu.
Cumprido o mandado, o Luciano deixou a sala ainda
vermelho. A pressão devia estar a mil.
Terminada a audiência, fui ter com ele.
O susto havia passado e ele já estava em condições de
rir da situação. Pediu – e ele sabia que era em vão – que eu não espalhasse a
história.
O Juiz ficou muito desconfiado.
Perguntou a mim se havia acontecido alguma coisa com o
Luciano. Se ele estava bem.
Eu garanti que sim. Que não havia nada de
extraordinário.
Anos depois eu mesmo contei a história para o Dr.
Manuel.
Eu já advogado com muitos anos de profissão e ele
Desembargador Aposentado.
Ele riu muito e me assegurou que desconfiara que alguma coisa eu tinha aprontado.
Só que naquela época, ele não conhecia esse meu lado
sarcástico e gozador.
Ah, o processo?
O casamento foi anulado, mas o homem garantiu que não
tinha nada de impotente. Que o negócio era só com a mulher mesmo.
Que a relação
tinha se tornado traumática por algum motivo que eu não me lembro.
Trouxe duas testemunhas que tinham transado com ele no
tempo de solteiro.
Depois disso tanto ele, quanto ela, contraíram novo
casamento e tiveram filhos, ao que se
soube.
O fato é que certamente todos esqueceram o caso e o
réu.
Menos o Luciano.
Acho que por um bom tempo ele sonhou com aquele rosto
fechado, com barba cerrada e olhos arregalados dizendo para ele:
- Vem cá, benzinho. Vem fazer o teste pro se vê o que
é bom pra tosse!".
Até breve amigos,
Até breve amigos,