domingo, 29 de novembro de 2015

CAUSAS & CAUSOS II - INSPEÇÃO PESSOAL


Boa tarde amigos,


Caricatura emprestada de bethmichel.com.br.
Hoje, último dia do mês de novembro, domingão muito chuvoso, vai aí um "causo" para aliviar.
Ele está no meu livro "Causas & Causos" II, Milleniun 2.010,  e lembra os meus bons tempos de escrevente.

Vai lá:                                         


                                       Finalmente chegara o dia da audiência de instrução e julgamento designada pelo Juiz no rumoroso processo de anulação de casamento.
Começo dos anos 70, o casamento ainda era indissolúvel no Brasil, por força de preceito constitucional expresso.
Havia sim um movimento em favor do divórcio, encabeçado pelo saudoso Senador Nelson Carneiro, mas que ainda não encontrara eco suficiente para viabilizar Emenda Constitucional.
Além de tudo, era forte a oposição de segmentos e instituições significativas, inclusive e principalmente da Igreja Católica, que se manifestava francamente contrária à ideia, e essa posição tinha enorme peso, mesmo com a já cinquentenária secularização do instituto do matrimônio.
Eram freqüentes, por essa mesma razão, os pedidos de nulidade ou anulação de casamentos que se revelavam falidos ou de subsistência indesejável depois de  pouco tempo de celebração.
Sabia-se que o mau ou equivocado passo condenava ambos os cônjuges a uma vida inteira de abstenção de um outro matrimônio, com as formalidades e os efeitos legais. O  máximo que se concedia era o chamado  “desquite”. Mas o vínculo permanecia. Em alguns casos, pessoas de alto nível social ou econômico, para dar satisfação à sociedade, contraíam (ou diziam que contraíam)  um segundo casamento em país vizinho ou da Europa. Mas era só para “inglês ver” como se dizia, mesmo porque o tal casamento, se realmente tinha acontecido, não tinha efeito no Brasil.
Aqui, como se diz lá em Piracicaba, os cara era “amigado” mesmo.
 Pois bem, voltando ao  “ causo” a hipótese era de alegação de casamento não consumado,  por suposta impotência instrumental do marido (impotência coeundi).
O varão, por sua vez, contestava a ação, alegando que não era impotente; que tinha logrado vida sexual regular na juventude; que tinha se relacionado normalmente com outras mulheres etc. etc.
O dia era de audiência de instrução e julgamento.
Eu era Escrevente. O Juiz, o Dr. Manuel Carlos.
O Luciano, Oficial de Justiça, estava designado, naquele dia, Porteiro dos Auditórios.
Tratava-se apenas de uma função exercida pelo Oficial de Justiça e que consistia em permanecer à porta da sala de audiências, apregoando as partes e advogados e garantindo a regularidade dos trabalhos que ali haveriam de ser efetivados.
Resolvi sacanear o Luciano.
Saí da sala e confidenciei a ele no saguão de entrada:
- Luciano, você tem uma árdua missão hoje, sabia?
- Que missão? retrucou ele com desconfiança.
- Você sabe que hoje é a audiência daquele caso que corre em segredo de Justiça, da anulação de casamento?
- É,  eu vi aqui na pauta.
- Pois é, e não é que o Dr. Manuel resolveu determinar uma inspeção pessoal?
- Inspeção pessoal, onde?
- Onde, não. Em quem, melhor dizendo.
- O que o ce qué dizê?
- Que a coisa é para confirmá ou negá. Você sabe que a moça diz que o “negócio” do marido não funciona, mas ele garante que funciona. Você leu, né?
 Luciano não respondeu a pergunta e me olhou de soslaio, imaginando o que viria depois.
- E daí?
- Daí que ele é o juiz e não vai fazer serviço sujo nenhum, né?
- Sei, e daí?
- Daí que ele perguntou quem estava de plantão hoje e eu disse que era você.
- E daí?
- Daí que você vai ter que entrar lá no gabinete dele só com o réu, pegar no negócio dele para vê se levanta ou não levanta e depois relatá a inspeção que é secreta, por razão que não se precisa explicá.
O Luciano começou a rir.
Eu tinha levado do Cartório um outro processo que a mesma autora movia contra o réu para pedir alimentos provisionais, enquanto se processava a anulação de casamento.
O marido ainda não tinha sido citado.
O escrevente havia expedido o mandado de citação, mas quando eu percebi que estava próximo o dia da audiência, achei melhor deixar que a citação se fizesse por ocasião da audiência, quando o réu, por certo, estaria presente no Fórum.
Não disse uma palavra ao Luciano, que era o oficial destacado também para o ato da citação.
Retornei para a sala de audiências.
Antes de seu início e das partes e advogados ingressarem no recinto, falei ao Juiz:
- Dr. Manuel. Tem aqui um outro processo entre as mesmas partes que depende de citação. O Cartório expediu o mandado. Posso  pedir ao Luciano que cite o réu hoje, aqui no Fórum?
- Pode.
- Se o senhor não se importar posso pedir que o réu entre no seu gabinete e que o Luciano faça a citação lá dentro, para não despertar curiosidade ou constrangimento, até mesmo porque é caso de segredo de Justiça.
- Não só pode como deve, aplaudiu o Magistrado o cuidado e a prudência que eu manifestava.
Não me fiz de rogado.
Primeiro pedi ao Luciano que apregoasse a audiência e que solicitasse ao réu que entrasse no gabinete particular do juiz, anexo àquela sala.
Ele me olhou desconfiado, mas atendeu à determinação.
Eu fiz o Juiz supor que o Luciano já estava inteirado do assunto, o que não era verdade.
Deixei o mandado dentro da sala sem falar nada para o Luciano.
O Juiz chamou o Luciano e disse a ele:
- Seo Luciano, o senhor já pode fazer o que o Jamil lhe disse. O réu se encontra no meu gabinete.
O Luciano corou.
E foi mudando de  cores diversas vezes em poucos segundos.
Olhava incrédulo para o Juiz e para mim, paralisado.
Pensei que ele fosse ter um treco.
Mais do que depressa eu me aproximei dele e disse em tom baixo:
- Ô Luciano, você está bem. Não fique preocupado, eu acompanho você. Vamos, o réu até que é bonitinho.
  Entrei com ele no gabinete para poder, longe de todos, explicar a gozação e o que se pretendia verdadeiramente dele.
Entreguei o mandado que estava em cima da mesinha.
Ele não se conteve e na frente de um réu surpreso, bradou:
- O Jamil, filho da puta. Vá pra puta que te pariu.
Cumprido o mandado, o Luciano deixou a sala ainda vermelho. A pressão devia estar a mil.
Terminada a audiência, fui ter com ele.
O susto havia passado e ele já estava em condições de rir da situação. Pediu – e ele sabia que era em vão – que eu não espalhasse a história.
O Juiz ficou muito desconfiado.
Perguntou a mim se havia acontecido alguma coisa com o Luciano. Se ele estava bem.
Eu garanti que sim. Que não havia nada de extraordinário.
Anos depois eu mesmo contei a história para o Dr. Manuel.
Eu já advogado com muitos anos de profissão e ele Desembargador Aposentado.
Ele riu muito e me assegurou que desconfiara  que alguma coisa eu tinha aprontado.
Só que naquela época, ele não conhecia esse meu lado sarcástico e  gozador.
Ah, o processo?
O casamento foi anulado, mas o homem garantiu que não tinha nada de impotente. Que o negócio era só com a mulher mesmo.
 Que a relação tinha se tornado traumática por algum motivo que eu não me lembro.
Trouxe duas testemunhas que tinham transado com ele no tempo de solteiro.
Depois disso tanto ele, quanto ela, contraíram novo casamento e tiveram filhos, ao que se  soube.
O fato é que certamente todos esqueceram o caso e o réu.
Menos o Luciano.
Acho que por um bom tempo ele sonhou com aquele rosto fechado, com barba cerrada e olhos arregalados dizendo para ele:
- Vem cá, benzinho. Vem fazer o teste pro se vê o que é bom pra tosse!".

Até breve amigos,









Um comentário:

  1. Morri de rir e fico imaginando o Dr. Jamil falando sério com o coitado!

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