quinta-feira, 29 de novembro de 2012

ADEUS, NEIDE CARICCHIO

Boa noite amigos,
 
Amiga de tantos e tantos anos, perdidos na noite dos tempos, era sempre uma grande alegria encontrá-la, o que acontecia, raramente embora, nos últimos anos.
Na década de 70, saíamos pela noite de Campinas, frequentando ambientes simples e marginais, próprios de boêmios e sonhadores.  Do Bar da Lingüiça àquela adega, cujo nome não me lembro (se é que tinha nome), lá na Sales de Oliveira.  Eu, ela, o Bentão, o Zé de Oliveira,  a Vanderli, o Hélio, a Lysia, o glorioso Manuel Fábio, que nos deixou há tão pouco tempo, em noitadas históricas nas quais dividíamos as nossas tristezas e alegrias, regadas ao vinho, chopp, e algum tira-gosto, as inquietações políticas, o lirismo dos nossos poetas e os seus eventuais préstimos na nossa vida e nos nossos sonhos.
Era  um Brasil de ditadura, de protestos, de Geraldo Vandré, Chico e Caetano, de um povo que tentava resgatar a sua identidade étnica, cultural, política e a sua liberdade.
Ela mais velha entre nós, e portanto, mais sábia,  mais experiente, parecia, contudo, a mais jovem naquele espírito maravilhoso, e  sempre  tinha uma palavra, uma piada, uma história, uma sacada inteligente, que alegrava os nossos encontros.
Procuradora Municipal ilustre e de carreira, tinha chefiado a Procuradoria e sido Secretária dos Negócios Jurídicos do governo do Prefeito Rui Novaes. Era um exemplo de mulher vencedora, que rompera barreiras, numa época em que pouco se concedia às mulheres, especialmente na política. Tempos de Leila Diniz, cuja corajosa trajetória foi abortada por um acidente aéreo, que também levou o nosso Agostinho dos Santos.  Confidenciou-me um dia que seu nome tinha sido levado a certo General do Exército, por um puxa-saco da revolução,  como suposta militante comunista,  o que, se não se positivou, nem lhe custou violência física ou prisão, chegou a restringir, de certa forma, algumas de suas pretensões profissionais. Não impediu, porém, de maneira alguma, o seu sucesso e a sua marcante trajetória, como pessoa e profissional.
Eu sempre brincava, que ela se tornara imortal, des que seu nome fora inscrito numa placa (acho que não era placa, mas inscrição em alvenaria mesmo), debaixo do Viaduto Miguel Vicente Cury, como sendo a Secretaria dos Negócios Jurídicos no governo do Prefeito Rui Novaes, responsável por aquela obra.
Uma grande tristeza foi a morte repentina e absolutamente precoce de sua querida sobrinha Maria Inês (ela nunca se casara, nem tivera filhos, dedicando seu amor aos irmãos e sobrinhos, especialmente aos filhos de Maria Inês, que ficaram órfãos).
Aposentada na Prefeitura desde a década de 80, comandou, com grande desenvoltura, um alentado escritório de advocacia em Campinas, um dos mais famosos e competentes na área de direito administrativo e direito do Trabalho, juntamente com o advogado Wilson Rahal, de quem era discípula,  responsável por grandes causas em favor, sobretudo, dos servidores públicos ativos e inativos e de seus dependentes.
Quando fiz concurso para a Magistratura e assumi o cargo de Juiz Substituto em Campinas, encontrei-me com ela no corredor do segundo andar do Palácio da Justiça e ela, delicadamente, me estendeu a mão, num cumprimento formal, preocupada com a distância que deveria manter entre a advogada militante e o Juiz de Direito, nas dependências do Fórum.
Recusei o cumprimento e a beijei como sempre fazia, sem a preocupação que ela demonstrara, de forma generosa,  com a minha imagem e a minha posição.
Nossas conversas eram intermináveis. Varávamos a noite tagarelando sobre os mais diversos assuntos. Ela dizia à Mara minha mulher, quando nos despedíamos lá pelas tantas da madrugada, que ainda não tínhamos acabado o assunto. Era sempre assim.
Pontepretana por tradição de família e eu bugrino, tínhamos a sensatez de não falarmos de futebol, papo que eu mantinha e mantenho com outros companheiros e que certamente,  nunca fez falta, no nosso caso.
Nas últimas décadas, os nossos encontros aconteciam na casa da Ophélia, outra grande amiga, outra mulher exemplar, nos jantares com que Ophélia nos brindava, de tempos a tempos,  regados a whisky, vinho e cerveja, com comida tradicional nordestina ou européia, "papo mole" ou "papo cabeça", à escolha do fregues, música, canto e poesia.
Não fumávamos mais, como nos velhos tempos.  Ela também já não bebia, mantendo uma vida mais consentânea com a idade que chegava irremediavelmente. Mas a alegria, a jovialidade, o interesse por tudo e por todos continuavam vivos, vivíssimos.
A semana passada fiquei sabendo que  fora internara depois de passar mal.
A Ophélia me dava notícias quase diárias de seu estado de saúde, que piorara muito nos últimos dias e não prenunciava um final feliz.
Hoje recebi dois telefonemas seguidos: o da Mara, minha mulher e o da Ophélia, me transmitindo a triste notícia de seu falecimento.
Acho que hoje não chego a lamentar demais a morte de meus amigos. Aceito-a como contingência da vida e  não quero vê-los sobreviverem com dificuldade e sem qualidade de vida, com sérias seqüelas, por exemplo.  Meu amor por eles é menos egoísta. Recebo a notícia da morte de meus amigos, assim, sem muito sofrimento, até com suposta resignação, louvando o fato de que nessa vida temporal e finita, me deram a possibilidade, a honra  e a alegria de uma contemporaneidade de compartilhamento e trocas.
Campinas, a sociedade campineira, os parentes e amigos perdem uma grande cidadã, que muito fez pela cidade, uma excepcional mulher e uma companheira leal e sensível.
A advocacia campineira perde uma de suas mais ilustres profissionais.
Adeus minha grande e estimada amiga,  Neide Caricchio.
Agora não  podemos  mais terminar a nossa conversa, aquela que nunca terminava.
Ou vamos fazê-lo, quem sabe,  qualquer dia, rindo bastante, como a gente fazia, tomando um whiskinho.
Quem sabe!
Lá no infinito, como diz aquele samba belíssimo da Gaviões da Fiel, que ganhou o carnaval de São Paulo há anos "O que é Bom Dura Pra Sempre".
Até amanhã.
 
P.S. (1) Se é verdade que o Prefeito Rui Novaes  teve contra si a demolição do Teatro Municipal Carlos Gomes, realizou também  uma obra que na época foi importante para Campinas: a construção do Viaduto Miguel Vicente Cury, que ligava a Vila Industrial ao Centro da Cidade, substituindo um caminho estreito que não se coadunava com a grandeza que a cidade assumia e que permitia a passagem apenas de um veículo de cada vez;
P.S. (2) Antes do espaço sob o viaduto Miguel Vicente Cury ser transformado em terminal de ônibus e, posteriormente, invadido por comércio ambulante, ali existia uma bela praça, muito bem arrumada. Era lá que ficava a tal inscrição com os dados da inauguração da obra. Nem sei se ela (a inscrição) ainda existe; 
P.S. (3) Neide tinha 79 anos. No seu “curriculum vitae” consta, ainda,  ter sido Chefe de Gabinete da Prefeitura Municipal de Campinas, entre 1.983 e 1.985,Conselheira Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo e Vice-Presidente da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo (CAASP);
 
P.S. (4) A imagem de Neide que ilustra a coluna de hoje foi emprestada do site g1.globo.com;

P.S. (5) Algumas figuras, durante a revolução, se prestavam a denunciar pessoas que julgavam contrárias ao movimento. Às vezes a denúncia era infundada ou gratuita, e visava: a)  ou excluir a competição de alguém que tinha mais competência que o denunciador, ou, b)  simplesmente "se dar bem" ou "ficar bem" com os militares. Gente desprezível essa, mas não se pense que eram apenas pessoas comuns. Tinha muito cidadão ilustre ou importante que se prestava a esse tipo de coisa. Não deixaram saudade, certamente;

 
 
 
 
 
 
 
 

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