quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O ESPELHO - CONTO FILOSÓFICO DE MACHADO DE ASSIS

Olá amigos, 

Esboço da imagem do escritor Machado de Assis, 

emprestado de pixabay.com.br
Reli, ontem à noite, um dos contos que mais aprecio de Machado de Assis: O Espelho. É que, além de ser uma obra literária de qualidade, vazada naquela peculiar linguagem enxuta, escorreita e requintada do mais talentoso e versátil representante do realismo brasileiro, o conto revela sua incursão pelo campo dos ensaios filosóficos, aspecto que já vem denunciado no subtítulo que ele próprio elegeu, ao usar a expressão “esboço de uma nova teoria da alma humana”.  No colóquio de cinco personagens, reunidos em uma noite, num lugar qualquer não elucidado, Jacobina (alterego do próprio Machado?) traz à tona uma experiência por ele vivenciada na mocidade, que lhe permitiu concluir seguramente pela existência de duas almas, conclusão que em nenhum momento pôs em discussão para os demais companheiros: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro.... Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo, não admito réplica. Se me replicarem acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens,um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência, e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.”
Para ilustrar a alma exterior, Machado se refere à patente de Alferes conferida a Jacobina. E de tudo o que tal lhe rendeu em termos de reconhecimento familiar e social, de maneira tão intensa e inevitavelmente imposta e assimilada que a alma exterior acabou por sufocar a interior: “O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.” E colacionou fatos para justificar a conjetura, relatando os detalhes de sua permanência de três semanas em modesta casa de uma tia, a tia Marcolina,  que não se cansava de ressaltar a importância de sua patente de alferes e lhe conferira privativo e adequado aposento, para onde determinara a remoção do único móvel valioso, um grande e tradicional espelho que se encontrava dantes adornando a sala de visitas.
Ah! Aquele espelho traria à tona o que sua mente jamais poderia suspeitar. As duas naturezas de Jacobina: a alma interior e a alma exterior, conforme o caso.
A primeira era a imagem de um mero autômato, de uma figura humana fragmentária, sem contornos definidos: “Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo, não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra.” Quando, porém, o alferes lembrou-se da farda e a vestiu, outra foi a sensação. A imagem se revelava  soberba, completa, cabal,  de contornos bem definidos, de um homem valente e seguro: “o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso: era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior.”  Acho que bem ou mal todos nós pressentimos a existência dessa dualidade. Vivendo necessariamente os nossos papéis sociais (pais, mães, marido, mulher, amigo, inimigo, vizinho, engenheiro, advogado, nacional, estrangeiro, patrão, empregado, etc. etc.) damos vida a nossa alma exterior,  seguindo regras e modelos bem definidos, que não constituem, porém, a nossa essência como seres individuais, únicos na espécie,  com vontades e sentimentos, razão e emoção, juízos de dúvida, em busca de uma coerência inútil e inexistente. Aqui, olhando de fora para dentro, buscando a nossa alma interior, já não há espaço para regras ou interferências. Penetramos no nosso “psique”  mais profundo, seja ele um anjo, uma alma, uma aura, uma natureza humana interior,  ou coisa que o valha, numa operação que comumente se apelida de busca de autoconhecimento. O equilíbrio entre as duas almas, as duas vertentes,  constitui a forma mais salutar de se viver neste mundo, sem enlouquecer. Nem sempre é fácil. Mas na medida em que não temos como evitar essa dualidade, num mundo que nos cobra muitos papéis na diversidade das relações humanas, é aceitável que se apele para as fantasias do personagem ou dos personagens sociais e seus papéis, quando eles alimentam a  auto-estima e nos auxiliam a suportar as nossas perdas e  dramas  existenciais, que a gente enfrenta, ou nega veementemente, como nega a realidade, preferindo substituí-la[1] pela fantasia, pela poesia e sua eficácia redentora[2]. Pela poesia e sua capacidade transformadora. Pela poesia e sua peculiar descrição da realidade sob a perspectiva de quem vê. Sem razão, portanto, o nosso poetinha[3] quando confessa piedade por sua poesia, que reputa bela, porém inútil.[4].  


Até mais amigos,

  
P.S. (1) O conto integra a obra, Papéis Avulsos, 3º livro de contos de Machado, publicado no ano de 1.882. Segundo os estudiosos do escritor e de sua rica literatura, nesse conto, se propõe ele a anunciar uma nova teoria metafísica sobre a alma humana.






[1]  "E me deito, feliz por ter vivido e sofrido em outros que não eu mesmo. Vocês talvez me digam: "Tem certeza de que esta lenda é verdadeira? Que importa o que possa ser a realidade situada fora de  mim, se me ajudou a viver, a sentir que sou e o que sou?" Charles Baudalaire em Pequenos Poemas em Prosa.
[2] “O poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente”  - Fernando Pessoa.  Autopsicografia.
[3]  Apelido que Vinicius de Moraes recebeu de Elis Regina num episódio em que ambos se estranharam por causa de questões financeiras envolvendo o filme Garota de Ipanema.  Vinicius, por seu turno, respondeu atribuindo a Elis, a alcunha de “Pimentinha”, por causa de sua forte personalidade e seu gênio indomável. 
[4]      "Resta essa vontade de chorar diante da beleza. Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido. Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa piedade de sua inútil poesia e de sua força inútil". Parte do poema O Haver.


Um comentário:

  1. Uau! As minhas duas almas mergulharam nas reflexões e na conclusão brilhante, de tal forma que, num primeiro momento, não se reconheceram por terem se tornado iguais. Mas voltaram à sua condição, reconhecendo uma a importância da outra, com uma ligação ainda maior entre suas essências.

    ResponderExcluir