Olá amigos,
Esboço da imagem do escritor Machado de Assis,
emprestado de pixabay.com.br
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Reli, ontem à noite, um dos
contos que mais aprecio de Machado de Assis: O Espelho. É que, além de ser uma obra literária de
qualidade, vazada naquela peculiar linguagem enxuta, escorreita e requintada do
mais talentoso e versátil representante do realismo brasileiro, o conto revela
sua incursão pelo campo dos ensaios filosóficos, aspecto que já vem denunciado
no subtítulo que ele próprio elegeu, ao usar a expressão “esboço de uma nova teoria da alma humana”.
No colóquio de cinco personagens, reunidos em uma noite, num lugar
qualquer não elucidado,
Jacobina (alterego do próprio Machado?) traz à tona uma experiência por
ele vivenciada na mocidade, que lhe permitiu concluir seguramente pela
existência de duas almas, conclusão que em nenhum momento pôs em discussão para
os demais companheiros: “Cada criatura humana traz duas
almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para
dentro.... Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros,
tudo, não admito réplica. Se me replicarem acabo o charuto e vou dormir. A alma
exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens,um objeto,
uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma
exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma
máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício
dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o
homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades
perde naturalmente metade da existência, e casos há, não raros, em que a perda
da alma exterior implica a da existência inteira.”
Para ilustrar a alma exterior,
Machado se refere à patente de Alferes conferida a Jacobina. E de tudo o que
tal lhe rendeu em termos de reconhecimento familiar e social, de maneira tão
intensa e inevitavelmente imposta e assimilada que a alma exterior acabou por
sufocar a interior: “O alferes eliminou o homem. Durante
alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva
cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a
alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou
de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava
do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou
comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se
no ar e no passado.” E colacionou
fatos para justificar a conjetura, relatando os detalhes de sua permanência de
três semanas em modesta casa de uma tia, a tia Marcolina, que não se cansava de ressaltar a importância
de sua patente de alferes e lhe conferira privativo e adequado aposento, para
onde determinara a remoção do único móvel valioso, um grande e tradicional
espelho que se encontrava dantes adornando a sala de visitas.
Ah! Aquele espelho traria à tona
o que sua mente jamais poderia suspeitar. As duas naturezas de Jacobina: a alma
interior e a alma exterior, conforme o caso.
A primeira era a
imagem de um mero autômato, de uma figura humana fragmentária, sem contornos
definidos: “Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto
do universo, não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada,
difusa, sombra de sombra.” Quando, porém, o alferes
lembrou-se da farda e a vestiu, outra foi a sensação. A imagem se revelava soberba, completa, cabal, de contornos bem definidos, de um homem
valente e seguro: “o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha
de menos, nenhum contorno diverso: era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim,
a alma exterior.”
Acho que bem ou mal todos nós pressentimos a existência dessa dualidade.
Vivendo necessariamente os nossos papéis sociais (pais, mães, marido, mulher,
amigo, inimigo, vizinho, engenheiro, advogado, nacional, estrangeiro, patrão,
empregado, etc. etc.) damos vida a nossa alma exterior, seguindo regras e modelos bem definidos, que
não constituem, porém, a nossa essência como seres individuais, únicos na
espécie, com vontades e sentimentos, razão
e emoção, juízos de dúvida, em busca de uma coerência inútil e inexistente.
Aqui, olhando de fora para dentro, buscando a nossa alma interior, já não há
espaço para regras ou interferências. Penetramos no nosso “psique” mais profundo, seja ele um anjo, uma alma, uma
aura, uma natureza humana interior, ou coisa
que o valha, numa operação que comumente se apelida de busca de autoconhecimento. O equilíbrio entre as duas almas, as duas vertentes, constitui a forma mais salutar de se viver
neste mundo, sem enlouquecer. Nem sempre é fácil. Mas na medida em que não
temos como evitar essa dualidade, num mundo que nos cobra muitos papéis na
diversidade das relações humanas, é aceitável que se apele para as fantasias do
personagem ou dos personagens sociais e seus papéis, quando eles alimentam a auto-estima e nos auxiliam a suportar as
nossas perdas e dramas existenciais, que a gente enfrenta, ou nega
veementemente, como nega a realidade, preferindo substituí-la[1] pela fantasia,
pela poesia e sua eficácia redentora[2]. Pela poesia e
sua capacidade transformadora. Pela poesia e sua peculiar descrição da realidade sob a perspectiva de quem vê. Sem razão, portanto, o nosso poetinha[3] quando confessa
piedade por sua poesia, que reputa bela, porém inútil.[4].
Até mais amigos,
P.S. (1) O conto integra a obra, Papéis
Avulsos, 3º livro de
contos de Machado, publicado no ano de 1.882. Segundo os estudiosos do
escritor e de sua rica literatura, nesse conto, se propõe ele a anunciar uma nova
teoria metafísica sobre a alma humana.
[1] "E me deito, feliz por ter vivido e sofrido em outros que não eu mesmo. Vocês talvez me digam: "Tem certeza de que esta lenda é verdadeira? Que importa o que possa ser a realidade situada fora de mim, se me ajudou a viver, a sentir que sou e o que sou?" Charles Baudalaire em Pequenos Poemas em Prosa.
[2] “O poeta é um fingidor, finge tão
completamente que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente” - Fernando Pessoa. Autopsicografia.
[3]
Apelido que Vinicius de Moraes recebeu de Elis Regina num episódio em
que ambos se estranharam por causa de questões financeiras envolvendo o filme
Garota de Ipanema. Vinicius, por seu
turno, respondeu atribuindo a Elis, a alcunha de “Pimentinha”, por causa de sua
forte personalidade e seu gênio indomável.
[4] "Resta essa vontade de chorar diante da beleza. Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido. Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa piedade de sua inútil poesia e de sua força inútil". Parte do poema O Haver.
Uau! As minhas duas almas mergulharam nas reflexões e na conclusão brilhante, de tal forma que, num primeiro momento, não se reconheceram por terem se tornado iguais. Mas voltaram à sua condição, reconhecendo uma a importância da outra, com uma ligação ainda maior entre suas essências.
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