Oi amigos,
O assunto de hoje é a transcrição de um dos " causos" que está no meu livro CAUSAS & CAUSOS, tomo I, no momento esgotado, após a primeira edição. O tomo II (capa reproduzida ao lado), está à disposição nas livrarias, para quem tiver interesse. Segue o conto, como eu conto:
A REFREGA.
“Orador é aquele que diz o que pensa e sente o que diz” (W.J. Bryan).
O “causo” se passou na Comarca de Angatuba, nos anos dourados da década de 60.
Cidade pequena, povo e hábitos tipicamente rurais, avultava a figura do “caboclo” ou “caipira”, um tipo característico que usava calças curtas e chapéu de palha.
Esperto, se fazia passar quase sempre, pela sincera modéstia, por matuto, pessoa sem cultura e ignorante.
“Dava uma de morto para entrar no c. dos vivos,” diria um velho amigo já falecido.
Infalivelmente era sujeito respeitoso e cumpridor de seus deveres.
A cidade estava em polvorosa.
Pela primeira vez iria acontecer um júri de verdade, porque desde a instalação da Comarca, na década de 50, nenhum crime de homicídio doloso, tentado ou consumado, tinha sido registrado ali.
O Zé do Mato tinha feito besteira.
Depois de muitos anos namorando com a Benedita e já estando de aliança para casar, não é que brigaram e desfizeram o noivado, sem qualquer motivo relevante?
O povo sabia, porém, que essa briga não ia dar em nada, que o reatamento era coisa certa e breve.
Num sábado, um daqueles amigos do alheio, resolve procurar o Zé do Mato, para dizer que a noiva dele estava num certo baile no salão paroquial.
E garantia o distinto que ela ali dançava “com Deus e todo mundo”.
O Zé, tomado de incontrolável ciúme, arma-se de uma peixeira e vai até o local, onde encontra a noiva efetivamente dançando e mais um punhado de gente, pois o salão estava lotado.
Depois de rápida discussão, de empurrões e chegas-para-lá, o Zé dá uma facada na noiva, que a atinge na região do baixo ventre.
A moça é socorrida, mas escapa com vida do atentado.
O Zé é denunciado por tentativa de homicídio e pronunciado pelo Juiz, para ser levado ao Tribunal do Júri popular.
Assim é que aconteceria o primeiro Júri na história da Comarca de Angatuba.
O Promotor de Justiça, pessoa tímida, não quis encarar o desafio de falar em público para muita gente, mesmo porque assegurava não ser bom de oratória, nem afeito a esse tipo de processo.
Oficiou à Procuradoria, pedindo escusa e a designação de um substituto.
No dia do julgamento, o salão do Júri estava lotado de gente.
O Juiz Presidente começa a sessão, interrogando o réu.
Depois dá início à instrução, chamando o Osório, um típico caboclo, primeira testemunha de acusação.
O Osório vem, pede licença para chegar, tira respeitosamente o chapéu, pede nova licença para se sentar, metendo as mãos entre o chapéu e este sobre o colo, numa atitude de humildade e certo temor reverencial.
Seu depoimento, no entanto, não vai sendo favorável à acusação, o que provoca no Promotor, um almofadinha de voz entoada e palavrório dificil, uma certa ira.
Quando o Juiz lhe dá a palavra para reperguntas, o tal Promotor dispara:
_ Excelência, antes de reperguntar. eu requeiro a Vossa Excelência que readvirta a testemunha de que ela depõe sob o compromisso de dizer a verdade. Que se mentir poderá ser processada por delito de falso testemunho e ser condenada à pena de reclusão de até quatro anos.
O Juiz volta-se para o caboclo e sem reproduzir a manifestação, indaga:
_ O Senhor ouviu?
O caboclo acena com a cabeça, afirmativamente.
_ Pois então saiba que não pode mentir.
_ Sim, senhor.
_ Vá lá então senhor Promotor, faça a repergunta.
Excelência, eu quero saber da testemunha, que é presencial, se a faca entrou na moça antes ou depois da refrega.
Silêncio tumular no auditório.
Ninguém sabia o que queria dizer a tal refrega.
Registram os dicionários que refrega significa luta, confusão, combate.
O Juiz volta-se para o caboclo, mais uma vez sem reproduzir a pergunta, mesmo porque também não sabia o que era refrega e diz:
_ Você ouviu?
_ Ouvi, sim senhor
Então pode responder.
_ Olha dotô, eu vou falar bem a verdade porque eu não sou hôme de mentira. Óia bem, se a faca entrou na moça antes ou depois da refrega eu num sei. Mas uma coisa eu garanto a vosmessê porque eu tava a uns dez metro do casar. A faca, doutor, entrou na moça pelo menos um meio parmo pra cima da refrega dela.
Até amanhã.
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