quinta-feira, 12 de abril de 2012

CAUSAS & CAUSOS - GALINHADA

Boa noite amigos.

Publico hoje mais um "causo" que está no meu livro "Causas & Causos" n. I, de 2.006, Editora Millenium, cuja edição se encontra esgotada.    Vamos lá:  "Era tradição culinária na pequena Comarca a "galinhada", um prato saborosíssimo, elaborado com esmero, durante horas. Para quem nunca fez, nem provou, posso assegurar que se trata de uma iguaria de primeira linha, para ser saboreada no melhor estilo caipira, com cachaça e muita prosa.   É também indispensável que o prato seja bem feito, por quem entenda e tenha amor pela "obra".  
Primeiro, a fritura da galinha bem cortada em pedaços, necessariamente em panela de ferro.Depois, o preparo do tempero e do arroz. E aí, deixa-se por horas, tudo misturado (arroz, galinha frita e tempero), cozinhando sempre em panela de ferro. Fato é que todo mundo que se prezasse naquela região sabia fazer a tal “galinhada”. E sempre melhor que os parentes, os vizinhos, amigos ou qualquer outra pessoa. Os “estrangeiros”, como eu, nomeado Juiz naquela localidade, e o Promotor, de São Paulo, éramos cortejados para provar a tal galinhada aqui e acolá.E íamos, quando podíamos (e a gente podia sempre porque não tínhamos o que fazer à noite, depois do expediente). Realmente atesto que a coisa era boa.Corria por aquelas bandas, também, uma lenda, segundo a qual, galinhada feita com galinha “roubada” era muito melhor.  O Padre Zezo chegou, durante sermão da missa de domingo, a pedir certa condescendência com a prática, em nome de uma cultura que se dizia antiga, embora condenável. Propalava,  mal comparando,  que se tratava de  uma espécie de crime privilegiado. Digamos, por assim dizer, se fosse possível dizer, um  crime doloso, sem dolo. Mais tarde, tendo o Padre Zezo sido vítima do mesmo crime, segundo ouvi dizer, mudou de idéia e, na mesma missa de domingo, desancou paulada nos agentes e naquilo que considerava “frouxidão moral” das autoridades constituídas, por não combater o delito com o rigor que julgava devesse ser adotado.O Zé Maria, vindo da Campininha para a cidade, passou por vários sítios e de um deles resolveu furtar uma galinha.Acreditava certamente na impunidade, pois antes olhou para todos os lados e não viu viva alma.Para seu azar, a mãe do investigador Bráulio assistiu à cena do vão da janela semi-aberta de seu sítio,  próximo do lugar. E, enquanto o Zé Maria tratou de “se arrancar” levando a bicha para a casa e direto para a panela, a Dona Luísa acionou imediatamente o filho e este, o Delegado, de sorte que foram todos para a casa do Zé.A galinha, depenada, foi apreendida em água fervente, dentro da panela.O  Zé foi preso em flagrante e o Dr. Delegado, extremamente  cauteloso,  tomou todas as diligências que entendeu oportunas, a partir da lavratura do auto de prisão em flagrante. Isso se deu num sábado.Na segunda-feira, quando cheguei ao fórum por volta das 10 horas, dentre os processos deixados sobre minha mesa, se encontrava esse, com o inquérito pronto e a denúncia do Ministério Público. Ao me inteirar dos fatos e, ciente de que o réu já era pessoa de certa idade, primário e de bons antecedentes, tratei de receber a denúncia e designar o interrogatório para o mesmo dia (o presídio ficava a poucos metros do fórum e não havia dificuldade alguma na remoção de presos). Após ouvir a versão do Zé a ele concedi, de ofício, liberdade provisória, sem fiança. Marquei para logo audiência de instrução e julgamento e a primeira pessoa a ser ouvida era a vítima, o tal sitiante, que, por sinal, conhecia e era amigo do Zé. Diante desse contexto, da primariedade do Zé, da vergonha que ele já tinha passado, da prisão por todo o fim de semana e do arrependimento que sinceramente demonstrara durante o interrogatório, indaguei da vítima se ela não teria perdoado o Zé e se considerava importante a sua condenação (mais como adminículo de elementos para o julgamento final do que por outra razão, uma vez que se tratava de ação penal pública incondicionada, não sendo necessária representação, nem relevante o perdão do ofendido). O sitiante, embora insistindo que o Zé era “boa gente” e que ele já tinha perdoado o seu ato, curiosamente insistia na condenação. -  Oía douto, eu já perdoei o Zé, mas acho que ele tem que levá uma ferrada, pra aprender. O inusitado, porém, deixei para o fim. Ao manusear as peças  do inquérito, acreditem, não é que me deparo com um AUTO DE RECO NHECIMENTO. Sabem do quê? Da galinha!O Doutor Delegado, aproveitando a presença da vítima por ocasião do flagrante, mandou lavrar o tal auto. Não resisti. Antes de encerrar o depoimento  virei para o sitiante e indaguei: - Seu Fulano, consta do inquérito que o senhor, no dia da prisão, esteve na Delegacia. É verdade? - É fato, seu Juiz.- Consta também que o senhor reconheceu a galinha lá na Delegacia, é verdade?- É sim senhor. - Mas espera aí. A galinha não tava depenada. O senhor vai me dizer que reconheceu como sendo sua aquela  galinha depenada?O caboclo tomou um susto. Baixou os olhos e não respondeu nada. Após pequena pausa, eu insisti: -  E então, Zé. Como é que isso? Acuado, mas acometido de repentina coragem, o caboclo levantou os olhos, fitou-me firmemente e respondeu para tentar quebrar o galho dele e principalmente do Delegado, genial autor do tal auto de reconhecimento:-  Ora, Doutor, acredite, acho que  é arguma coisa que vem de dentro memo. Bicho da gente, a gente conhece de quarqué jeito.Limitei-me a sorrir discretamente. Não insisti. Mais tarde condenei o Zé, que tinha confessado e assim confirmado a versão da fofoqueira da janela, a uma singela pena de multa. Mas o auto de reconhecimento de frango depenado continuou  entalado na minha garganta. E não sei porque, mas até hoje eu me lembro dele e daquele Delegado quando alguém fala em “excesso de exação”.

Até amanhã amigos.

P.S. (1) Exação é um termo estranho e pouco usual. O dicionário on line da Uol registra o seguinte acerca do verbete: "s.f. Cobrança ou arrecadação de impostos. Exatidão, correção, regularidade, cuidado: o trabalho foi empreendido com a maior exação."
 P.S. (2) A imagem de hoje da coluna é da animação "Fuga das Galinhas", um filme de 2.000, dirigido por Peter Lord e Nick Park, com Mel Gibson.




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