terça-feira, 15 de março de 2011

ROBERTO CARLOS E EU (NÓS)

A turma da Jovem Guarda era inimiga. O tal do ie.ie.ie.  não passava de um  movimentozinho cheio de cabeludos, cantores desafinados, guitarras, falsos roqueiros e versões sem graça,  imitação grosseira de artistas e conjuntos estrangeiros (não se chamavam ainda bandas), filhinhos de papai que falavam de calhambeque, gato preto e  outras futilidades,  num contexto em  que se reclamava consciência, civismo e nacionalismo. Xenofobia? Talvez. Mas caía bem. Mais que isso, nos sentíamos na adolescência, integrantes de uma juventude consciente, não idiota, que preferia o que se fazia de importante na MPB. Aquilo que se produzia aos domingos na TV Record, era uma droga. Bom era o Fino da Bossa comandado por Elis Regina e seu grupo, às quartas feiras.   E pelas enxurradas de compositores novos, corajosos, contestadores, grande parte vinda do Nordeste. Emocionávamo-nos ao ouvir Vandré instigante: “Vem vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”; Marcos e Paulo Sérgio Valle: “Mas um dia vai chegar e o mundo vai saber que não se vive sem se dar. Quem trabalha é que tem, direito de viver, pois a terra é de ninguém”; Milton Nascimento: “Trabalhando o sal pra ver a mulher se vestir, e chegar em casa encontrar a família sorrir. Filho vir da escola, problema maior é o de estudar. Que é pra não ter meu trabalho e vida de gente levar”. Chico Buarque: “Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem.... esperando a morte, esperando o dia de voltar pro norte.... A mulher de Pedro tá esperando um filho, vai esperar também”. Esperávamos  dias melhores para um Brasil que falava em seleção de futebol, pois éramos, ainda há pouco, bicampeões mundiais no Chile,  em carnaval,   para não falar de política, de políticos, de corrupção, de pobreza, de obscurantismo, da ditadura que logo se instalara.  De vez em quando acordávamos cantarolando uma musiquinha daquela turminha desagradável “Olho para a chuva que não quer cessar, nela vejo o meu amor”. Benzíamo-nos, porém, a tempo, repudiando a versão piegas do Demétrio que falava de coisas banais, como a chuva e o amor. Vieram os festivais e seu modismo. Veio também a Lei de Segurança Nacional e o AI-5, endurecendo a ditadura. Dos festivais sempre saíam novos compositores, músicos e cantores, para não falar em movimentos musicais.   Era o Festival da Canção no Rio de Janeiro e o Festival da Música Popular Brasileira em São Paulo, este patrocinado pela TV Record, dos bons tempos de Paulo Machado de Carvalho. A maioria dos grandes artistas era contratada pela Record, Canal 7 em Campinas,  e os musicais ocupavam, ao contrário de hoje, grande parte da pauta semanal da emissora. Na 3ª. versão do Festival da Record, eis que, surge, dentre os eruditos compositores da MPB, o tal Roberto Carlos, inscrito para interpretar uma das músicas concorrentes. Petulância, pensei. Não, Roberto entrava e enfrentava com humildade e extrema competência aquele auditório absolutamente hostil e radical, para interpretar a música de Luiz Carlos Paraná, “Maria, Carnaval e Cinzas”. Na entrada vaias ensaiadas. Os primeiros acordes  vieram de um Roberto imperturbável. “Nasceu Maria, quando a folia, perdia a noite, ganhava o dia, e foi fantasia seu enxoval, nasceu Maria no carnaval ....” À medida em que se desenvolvia a interpretação o auditório ficava cada vez mais silente. Eu também. Resultado: um honroso 5º lugar, com uma música fraca, anti-festival, pois não tinha aquele arranque que o público cobrava e que, por exemplo, levou ao 1º lugar um “Ponteio” de Edu Lobo, muito mais por causa do magnífico arranjo de Theo de Barros e de Marilia Medalha gritando o refrão, cantado em parceria com o próprio Edu e  o público: “Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar. Ponteio!”. Deixava-se a obra prima de Caetano, Alegria, Alegria, a melhor música do festival, num remoto 4º lugar: “Caminhando contra o vento, sem lenço e sem  documento, num sol de quase dezembro, eu vou”, cantada em sotaque baiano, com vogais abertas,  ao som das provocadoras guitarras introduzidas pelo precursor do Tropicalismo,  novidade meio vaiada, meio aplaudida, afinal compreendida e ovacionada.  Em 1968 para surpresa Roberto é o artista brasileiro convidado para o importante Festival de San Remo na Itália, logrando vencê-lo com a música de Sérgio Endrigo, Canzione Per Te. E lá estava a gente meio sismado outra vez, meio envergonhado, meio orgulhoso também, cantarolado em italiano  “...Ma oggi devo dire che ti voglio bene, per questo canto e canto te, La solitudine che tu mi hai regalato, Io la coltivo come un fiore” . Foi quando aprendi  que “fiore” em italiano era masculino, ao contrário de nossa flor, feminina. Abandonando a fase do “Negro gato”, dos “Splish Splash”, dos “Mexericos da Candinha”,  Roberto passa  a se dedicar totalmente à música romântica,  compondo cada vez mais e melhor ao lado de seu seu inseparável companheiro, Erasmo Carlos. Daí surgem “Esqueça”, “Nossa Canção”, “Só Vou Gostar de Quem Gosta de Mim”, “As Flores do Jardim da Nossa Casa”, “Sua Estupidez”, “As curvas da estrada de Santos”, “Detalhes”, “Amada Amante”.”Como Dois e Dois”, “Debaixo dos  Caracóis dos seus Cabelos”, “Quando as Crianças sairem de Férias”, “Como Vai Você”, “Proposta”, “O Portão”, “Além do Horizonte”, “Olha”, “Os Seus botões”, “Falando Sério”, “Cavalgada”, “Força Estranha”, “Café da Mãe”, “Amante à Moda Antiga”, “Emoções”, “O Concavo e o Convexo”, e os místicos “Jesus Cristo”, “Todos Estão Surdos”, “A Montanha”, “Nossa Senhora” . E  o mundo se rendia ao Rei, aqui e no exterior. Surgiam gravações de grandes artistas sobre o seu vasto repertório. A musa Gal Costa grava  Força Estranha” divinamente. Maria Bethania, magnífica, lança um disco só com músicas do Rei em português e em espanhol. A minha eterna cantora favorita, Elis Regina, outrora porta-voz do radical movimento em proteção da música popular essencialmente brasileira (que grande besteira, hein!) contra a turma do ie.ie.ie,  grava “As Curvas da Estrada de Santos”, dando à composição interpretação peculiar e dramática. Depois, em LP ontológico, grava mais tarde “Amante à Moda Antiga” (Eu sou aquele amante à moda antiga, daqueles que ainda mandam flores...). Roberto canta com Rick Martin, com Julio Iglesias, com Pavorotti, e se coloca entre os 100 cantores que mais venderam discos no mundo. Não por acaso, por certo. Os belos versos se multiplicam  Eu hoje estou aqui vivendo este momento lindo....” passou a abrir todos os programas anuais que Roberto fazia, no Natal, para a Rede Globo. Anos depois, ouvindo depoimento de Caetano Veloso, descubro surpreso (acho que a surpresa foi geral, pois a censura da época impedia que se desse notícia desse gênero), que o famoso “Debaixo dos Caracóis de seus Cabelos” não foi feito pra nenhuma namorada ou musa, mas para o próprio Caetano que, exilado em Londres (a quem homenageou com o belíssimo “London, London”), recebeu a inesperada visita de Roberto que para ele sim compôs a tocante canção e que dizia ”Um dia a areia branca, seus pés irão pisar. E vão tocar seus cabelos, a água azul do mar, janelas e portas vão se abrir, pra ver você chegar..... Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, uma história pra contar de um mundo tão distante”. Linda, poética, maravilhosa, profecia para o exilado que um dia pretendia voltar à terra natal e por ela ser acolhido. Roberto simples, direto, poético, generoso, solidário,  que assumia o seu amor por uma mulher desquitada, com a qual não podia casar regularmente, pois não havia divórcio no Brasil. Roberto religioso que se casou depois com Maria Rita e experimentou com ela até o fim, a dor de sua partida precoce e pranteada, vítima de doença letal, com o  que sensibilizou toda a Nação. Qual o segredo de sua música viva e permanente por  mais de 50 anos, comovendo tantas gerações, jovens e velhos, crianças e adultos? Penso que sua poesia e música se tornaram reconhecidas e vitoriosas,   porque falam de coisas universais e atemporais, como o homem e seus sentimentos. De coisas simples e essenciais, da vida, dos animais,  da solidariedade, do amor, da fé. Mas com profundo respeito, competência e delicadeza, como delicada a sua “Lady Laura”, feita para sua mãe costureira e que também virou uma espécie de hino nacional, pois não há quem não tenha experimentado, na vida adulta, a vontade um dia de tornar a ser menino e pedir à mãe heroina e protetora,  uma história e um abraço: “Lady Laura me leve pra casa, Lady Laura. Me conta uma história, Lady Laura. Me faça dormir, Lady Laura.” Ou de falar de um momento de amor e sexo, em que se envolve não apenas os amantes, mas parte deles e das coisas que, no cenário do amor, participam do ato com vida própria e expectativa:  Os botões da blusa que você usava, e meio confusa, desabotoava....  E aquela blusa que você usava, num canto qualquer, sozinha, esperava... Travesseiros soltos, roupas pelo chão.... Braços que se abraçam. Bocas que murmuram, palavras de amor, enquanto te procuram”. Uma pérola. E assim sua obra permanecerá e será julgada de forma imparcial pelas próximas gerações.     A Jovem Guarda e o Fino da Bossa foram embora há muito tempo, e com eles a intolerância. O gosto musical democratizado pelos anos, mostrou a sabedoria de Manuel Carlos, profetizando que “o verdadeiro artista não é aquele que faz arte para o público, mas aquele que faz público para sua arte”.  Sim,   a arte musical independe  de suas condicionantes de tempo, ritmo ou lugar. Minha juventude foi embora também. Roberto virou Rei e lenda. Fez parte de minha vida e de todos os da minha geração. Da anterior e também da posterior. Em cada bailinho de domingo, para as paqueras (...Meu bem já não precisa falar comigo dengosa assim, briga para depois ganhar mil carinhos de mim). Dos bilhetes enviados às namoradas (...tanto tempo longe de você, quero apenas lhe falar). Do casamento (Eu hoje estou aqui vivendo este momento lindo). Do filhos (... quando as crianças sairem de férias, talvez a gente possa então se amar, um pouco mais) . Das idas e das voltas (eu voltei, voltei para ficar, porque aqui, aqui é o meu lugar, eu voltei pras coisas que deixei).  Roberto, na segunda feira de carnaval  entrou num carro da Beija Flor e na Avenida em que recebeu homanagem foi triunfal. Vi jornalistas, repórteres, gente do povo, velhos, moços, crianças todos emocionados, chegando às lágrimas. Todos, sem exceção. E Roberto sorriu, se emocionou, jogou beijos e distribuiu rosas vermelhas.  Não fui ao Sambódromo. Se fosse não teria  vergonha ou escrúpulo de me enfiar no meio do povão e com ele bradar com todas as forças da minha memória,  meu arrependimento  e do meu coração (dando uma olhadinha de lado pra ver se não tinha nenhum conhecido daquele tempo para me gozar ou condenar) -:   Ei, Ei, Ei, Roberto é o nosso rei.
FIM

Um comentário:

  1. Esse papo de realeza e Roberto Carlos, pelo menos para esse novo e humilde seguidor do blog, é muito "REILATIVO" !!! rsrsrsrs
    Claro, se levarmos em conta a mensagem do lindo samba de Nélson Rufino e Zé Luiz do Império eternizado pelo vozeirão do grande Roberto Ribeiro, aí sim daria para considerar Roberto Carlos Rei de alguma coisa, pois segundo os mestres – Todo menino é um Rei... eu também já fui Rei... mas quá... despertei...
    Querido tio Jamil, beijão enorme, parabéns pela iniciativa e tô de olho no blog!!!
    Thiago

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