Boa noite amigo,
Imagine você que, após uma longa noite de sono, acorde e
constate que se transformou num inseto. Pensa que é um sonho, o
prosseguimento de um terrível pesadelo, mas não é. Aquilo está realmente
acontecendo. É paralisante e, conservando embora a identidade interior, a nova
configuração impede-o de se apresentar em público, de trabalhar, de ter
vida social. É preciso se ocultar do mundo, do pessoal de casa, do pai, da irmã
e da mãe. Como será possível viver essa nova identidade, doravante? Assim
começa “A Metamorfose” (Die
Verwandlung, em alemão), o título de
uma novela escrita no distante ano de 1.912, no espaço de vinte dias, por um jovem de 29
anos, que se tornaria um dos mais célebres e complexos escritores do século XX,
Franz Kafka. O autor nasceu em 1.883,
na cidade de Praga, Boêmia, hoje República Tcheca, na época pertencente ao
império Austro-Húngaro, e morreu, aos 41 anos, na Áustria, em 1.924. Quase
desconhecido em vida, sua obra é composta de contos, novelas, romances, cartas
e diários, todos escritos em língua alemã. A
Metaformose só foi publicada em 1.915 e teve uma segunda edição, em 1.918, ainda em
vida do escritor, o que se constituiu em
coisa excepcional na sua carreira. Na orelha do livro relançado agora em 2.011
pela Companhia das Letras, em apresentação
popular e barata, com tradução de Modesto Carone, afirma o editor: “De certo modo, não é preciso ter lido Kafka para conhecê-lo – um pouco,
pelo menos. O adjetivo Kafkiano tornou-se
para nós sinônimo de incompreensível,
caracterizando em geral uma sequência de fatos aparentemente banais e, ao mesmo
tempo, perfeitamente refratários a qualquer tipo de explicação”. Há quem
repute a Metamorfose a obra-prima do escritor. Não concordo. Considero-a
muito boa, importante e indispensável à leitura dos que apreciam a mais refinada literatura expressionista. Porém, longa e elaborada, e também mais complexa, O Processo, é, sem dúvida, a mais importante contribuição do escritor à literatura universal, escrita em período de rara inspiração e talento. De qualquer forma, A Metamorfose precisa ser lida e compreendida, embora nessa
compreensão, admitam os literatos, existam múltiplas interpretações. Não há
entendimento certo ou errado, em se tratando de Kafka. Há opiniões abalizadas e não abalizadas, divergentes e convergentes. De
minha parte, um apreciador inciente, como diria o meu amigo Regis de Morais, considero que a novela é auto-biográfica e o autor, por meio dela, utilizando
figuras retóricas para criar a hipótese surrealista, faz ácida crítica à prática meramente utilitarista nas relações entre as pessoas, seja no ambiente social, seja na vida familiar. Por isso a obra se tornou universal e atemporal e não suspeite que se mantenha, por isso mesmo, atualizada no mundo de hoje, no Brasil ou na Europa, na África ou em Israel. Ao contrário.
Enquanto o caixeiro-viajante, George Samsa, o protagonista, experimenta a
sensação de ter se transformado num desprezível e inútil inseto, vai
vivenciando, com profunda tristeza, as
mutações que acontecem em sua vida e no cotidiano de seus familiares: chefe, pai, mãe, irmã, hóspedes etc. A obra fala nesse lado
negro do ser humano, na intolerância, no descarte do que já não interessa, e até na suposta inexistência de qualquer tipo de afetividade pura e duradoura, fora de uma troca ou vantagem unilateral. É preciso conhecer Kafka. Ler a sua obra, inclusive esta, que é curta
e favorece os iniciantes e os ansiosos. Depois ler O Veredicto, Na Colônia Penal, O Processo e O Castelo,
outras obras fundamentais. O autor não se casou embora tenha mantido romances
longos com duas mulheres. A sua experiência em matéria de relações familiares
talvez tenha contribuído para o medo do casamento. Nunca foi acreditado pelo
pai, que jamais reconheceu sua carreira e seu talento literário e com quem mantinha uma relação profundamente desgastante e, até, neurótica.
O "inseto" talvez tenha sido a forma figurativa que o autor usa para denunciar a distorcida visão de seu pai a seu respeito. Talvez! Nunca passe do "Talvez" em se tratando de Kafka. É prudente.
Até amanhã.
P.S. A imagem que ilustra a coluna foi emprestada do blog thoughloversbelostloveshallnot.blogspot.com
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