Boa noite companheiros. Um dia Vinícius de Moraes, em momento de magnífica inspiração, escreveu uma de suas páginas mais profundas e mais belas. E a declamou, ao som de fundo do músico e compositor, Edu Lobo. Hoje por razões conhecidas ou desconhecidas, talvez pela chuva e pelo frio, pelo céu cinzento e ameaçador, pela melancolia que invade a alma de vez em quando, me deu vontade de rever, ouvir de novo e escrever para vocês, o HAVER do Vinícius, que muito tem a ver com a gente. E o faço para relembrar o próprio Vinícius, de quem tomamos emprestada a inspiração e a obra.
O HAVER:
“RESTA, ACIMA DE TUDO, ESSA CAPACIDADE DE TERNURA. ESSA INTIMIDADE PERFEITA COM O SILÊNCIO. RESTA ESSA VOZ ÍNTIMA PEDINDO PERDÃO POR TUDO. – PERDOAI! ELES NÃO TÊM CULPA DE TER NASCIDO.... RESTA ESSE ANTIGO RESPEITO PELA NOITE, ESSE FALAR BAIXO. ESSA MÃO QUE TATEIA ANTES DE TER, ESSE MEDO DE FERIR TOCANDO, ESSA FORTE MÃO DE HOMEM CHEIA DE MANSIDÃO PARA COM TUDO QUE EXISTE. RESTA ESSA IMOBILIDADE, ESSA ECONOMIA DE GESTOS. ESSA INÉRCIA CADA VEZ MAIOR DIANTE DO INFINITO. ESSA GUAGUEIRA INFANTIL DE QUEM QUER BALBUCIAR O INEXPRIMÍVEL. ESSA IRREDUTÍVEL RECUSA À POESIA NÃO VIVIDA. RESTA ESSA COMUNHÃO COM OS SONS, ESSE SENTIMENTO DA MATÉRIA EM REPOUSO, ESSA ANGÚSTIA DA SIMULTANEIDADE DO TEMPO, ESSA LENTA DECOMPOSIÇÃO POÉTICA EM BUSCA DE UMA SÓ VIDA, UMA SÓ MORTE, UM SÓ VINÍCIUS. RESTA ESSE CORAÇÃO QUEIMANDO COMO UM CÍRIO NUMA CATEDRAL EM RUÍNAS, ESSA TRISTEZA DIANTE DO COTIDIANO: OU ESSA SÚBITA ALEGRIA AO OUVIR NA MADRUGADA PASSOS QUE SE PERDEM SEM MEMÓRIA. RESTA ESSA VONTADE DE CHORAR DIANTE DA BELEZA. ESSA CÓLERA CEGA EM FACE DA INJUSTIÇA E DO MAL ENTENDIDO. ESSA IMENSA PIEDADE DE SI MESMO, ESSA IMENSA PIEDADE DE SUA INÚTIL POESIA E DE SUA FORÇA INÚTIL. RESTA ESSE SENTIMENTO DA INFÂNCIA SUBITAMENTE DESENTRANHADO DE PEQUENOS ABSURDOS, ESSA TOLA CAPACIDADE DE RIR Á TOA, ESSE RIDÍCULO DESEJO DE SER ÚTIL. E ESSA CORAGEM DE COMPROMETER-SE SEM NECESSIDADE. RESTA ESSA DISTRAÇÃO, ESSA DISPONIBILIDADE, ESSA VAGUEZA DE QUEM SABE QUE TUDO JÁ FOI COMO SERÁ E VIRÁ A SER. E AO MESMO TEMPO ESSE DESEJO DE SERVIR, ESSA CONTEMPORANEIDADE COM O AMANHÃ DOS QUE NÃO TÊM ONTEM, NEM HOJE. RESTA ESSA FACULDADE INCOERCÍVEL DE SONHAR. DE TRANSFIGURAR A REALIDADE, DENTRO DESSA INCAPACIDADE DE ACEITÁ-LA TAL COMO É, E ESSA VISÃO AMPLA DOS ACONTECIMENTOS, E ESSA IMPRESSIONANTE E DESNECESSÁRIA PRESCIÊNCIA, E ESSA MEMÓRIA ANTERIOR DE MUNDOS INEXISTENTES, E ESSE HEROÍSMO ESTÁTICO, E ESSA PEQUENINA LUZ INDECIFRÁVEL A QUE ÀS VEZES OS POETAS DÃO O NOME DE ESPERANÇA. RESTA ESSA OBSTINAÇÃO EM NÃO FUGIR DO LABIRINTO. NA BUSCA DESESPERADA DE UMA PORTA QUEM SABE INEXISTENTE. E ESSA CORAGEM INDIZÍVEL DIANTE DO GRANDE MEDO. E AO MESMO TEMPO ESSE TERRÍVEL MEDO DE RENASCER DENTRO DA TREVA. RESTA ESSE DESEJO DE SENTIR-SE IGUAL A TODOS. DE REFLETIR-SE EM OLHARES SEM CURIOSIDADE E SEM HISTÓRIA. RESTA DESSA POBREZA INTRÍNSECA, ESSE ORGULHO, ESSA VAIDADE, DE NÃO QUERER SER PRÍNCIPE SENÃO DO SEU REINO. RESTA ESSA FIDELIDADE À MULHER E AO SEU TORMENTO. ESSE ABANDONO SEM REMISSÃO À SUA VORAGEM INSACIÁVEL. RESTA ESSE ETERNO MORRER NA CRUZ DE SEUS BRAÇOS. E ESSE ETERNO RESSUSCITAR PARA SER RECRUCIFICADO. RESTA ESSE DIÁLOGO COTIDIANO COM A MORTE, ESSE FASCÍNIO PELO MOMENTO A VIR, QUANDO, EMOCIONADA ELA VIRÁ ME ABRIR A PORTA COMO UMA VELHA AMANTE. SEM SABER QUE É A MINHA MAIS NOVA NAMORADA.”
Até amanhã
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